Ponciá Vicêncio: entre a memória e a dor.


"O amanhã de Ponciá era feito de esquecimento. Em tempos outros, havia sonhado tanto!"


Li dois livros da Conceição Evaristo, "Olhos d'água" e "Ponciá Vicêncio", e já foi possível perceber como ela escreve a partir dos sentidos, utilizando as palavras de uma forma que parecemos ver e tocar aquilo que ela escreve. Suas personagens, carregadas de dor e sentimento, escancaram o que não conseguimos dizer. 

Com um pouco mais 100 páginas, o livro "Ponciá Vicêncio" traz a história de Ponciá, uma mulher negra, que se viu obrigada a deixar sua mãe e irmão para tentar "a sorte" na cidade. Partimos de Ponciá, para também acompanharmos a mãe Maria e seu irmão Luandi. 

Para uma pessoa branca, como eu, a leitura da história de uma família negra, marcada pela escravidão e pela constante presença do racismo em nossa sociedade, deve ser sempre uma busca por autocrítica e empatia. Penso que a escrita de Conceição também é uma forma de denúncia e resistência, dando força e representatividade para muitas pessoas negras. 

A história começa com a infância de Ponciá na roça, onde ela era feliz, o que será um contraponto para a vida adulta vazia e triste na cidade, para a qual ela foi forçada a se mudar, ante as pressões sociais. Ponciá era feliz na roça, no entanto, em seu horizonte aparecia um único destino: servir aos senhores donos de terras. 

A lembrança da infância traz também uma superstição, segundo a qual a menina que passasse embaixo do arco-íris virava menino. E Ponciá não queria virar menino, ela queria continuar menina, de modo que ao passar embaixo de uma arco-íris se apalpava toda para ter certeza que continuava menina. Quando li essa parte, logo no primeiro parágrafo do livro, fiquei pensando o quanto desejei ser menino na infância, sempre identifiquei os meninos como detentores de liberdades e melhores habilidades. Não que não gostasse de ser menina, mas identificava que os homens tinham mais vantagens. Ponciá, mas adiante do livro, em um momento que descreverei a seguir, também desejará ser homem. 

A figura do avô Vicêncio - primeiro homem que Ponciá se recorda - a acompanhará por toda a vida, como representação da ancestralidade. A  herança deixada por ele à Ponciá, citada ao longo do livro, nos mostrará que é marcada pela dor das opressões e violências sofridas por sua família. 

Um dos pontos que mais me chamou atenção, dentro do meu olhar investigativo feminista (rs), foi a relação de Ponciá com o seu marido. O vazio, a angústia e a tristeza profunda sentida por Ponciá, que a imobiliza, não é compreendida por "seu homem" (tal como denomina). Na verdade, sem entender o silêncio e o distanciamento de Ponciá, o homem passa a agir de forma violenta. Tudo leva a crer que é a incompreensão do homem que o faz agir desse modo. Falta recursos a ele para lidar com aquele sentimento de vazio e de depressão de Ponciá. Será que Conceição está sugerindo que muitos homens, incompreendendo as dores das mulheres, agem de forma agressiva? De certa forma, ao contrário da lógica dominante das autoras feministas brancas, o marido agressor de Ponciá não é colocado como inimigo, na verdade, ele é colocado como uma pessoa tão sofrida quanto Ponciá, mas que sofre de outras dores, sendo tão vítima dos preconceitos e exclusões sociais quanto a sua companheira. Esses parágrafos são elucidativos:


"O homem de Ponciá estava cansado, muito cansado. Sua roupa empoeirada, assim, como o seu corpo, porejavam pó. Ele e outros estavam pondo uma casa, antiga construção, abaixo. Tarefa difícil, cada hora era um que pegava a marreta e golpeava as paredes que resistiam. Ele se lembrava, a cada esforço, do barraco que moravam e que flutuava ao vendo. Ao ver a mulher tão alheia teve desejos de trazê-la ao mundo à força. Deu-lhe um violento soco nas costas, gritando-lhe pelo nome. Ela devolveu um olha de ódio. Pensou em sair dali, ir para o lado de fora, passar por debaixo do arco-íris e virar logo homem. Levantou, porém, amargurada de seu cantinho e foi preparar a janta para ele". (p. 19).
"Às vezes, ficava matutando para quem a vida se tornara mais difícil. Para a mulher ou para o homem? Lembrava-se do pai, da história do pai dele, o Vô Vicêncio, do irmão dele que trabalhava desde cedo nas terras dos brancos e que nem tempo de brincadeira tivera. E acabava achando que, pelo menos para os homens que ela conhecera, a vida era tão difícil quanto para a mulher". (p. 48).  
Consigo ver que parte do feminismo branco - pautado pela identificação do homem como inimigo - não suportaria essa pergunta: para quem a vida é mais difícil, para o homem ou para mulher? Isso porque a pergunta - pelo menos em um primeiro momento - não está atrelada a raça e/ou classe, o que faz toda diferença.

Penso que a pergunta de Ponciá busca mostrar que a supremacia do homem branco também atinge os homens negros, como bem descrito no livro. Nos escritos de feministas negras (como de Angela Davis e bell hooks - citadas a seguir) parece existir uma necessidade maior de tentar aproximar os homens negros da luta feminista, por entenderem a necessidade de união para combater o racismo.  Parte do feminismo branco, em alguns momentos, já reduziu os homens como os inimigos das mulheres, esquecendo que a estrutura do capitalismo patriarcal é a verdadeira vilã. 

Nesse contexto de exploração, descrito no livro, não há como falar em propriamente uma supremacia do homem negro - como se fala do homem branco, hétero, cis e rico. Por isso, que a autora ressalta "para os homens que conhecera" é possível dizer que sofriam tanto como a mulher.

É assim que tento interpretar o trecho citado acima, que claramente retrata uma cena de violência doméstica gravíssima, na qual parece que o foco não é necessariamente a agressão, mas a ausência de recursos para lidar com o sofrimento imposto. Por outro lado, não é possível deixar de responsabilizar o marido de Ponciá sobre seus atos violentos, apesar da fala de empatia de Ponciá sobre as dores do homem e da mulher.

Para ilustrar um pouco, cito Angela Davis em "Mulheres, classe e raça" quando fala sobre o sistema escravocrata nos Estados Unidos:


"No que dizia respeito ao trabalho, força e a produtividade sob a ameaça do açoite eram mais relvantes do que as questões relativas ao sexo. Nesse sentido, a opressão das mulheres era idêntica à dos homens.
Mas as mulheres também sofriam de forma diferente, porque era vítima de abuso sexual e outros maus-tratos bárbaros que só poderia ser infligidos a elas. A postura dos senhores em relação às escravas era regida pela conveniência: quando era lucrativo explorá-las como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de gênero, mas, quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modo cabíveis apenas às mulheres, ela eram reduzidas a condição de fêmeas" (p.19). 
Destaco o trecho acima porque ele ilustra como homens e mulheres negras foram submetidos ao mesmo processo de escravidão e sofrem até hoje os efeitos dela e do racismo, mas ao mesmo tempo  o racismo e o sexismo se articulam para operar um forma de opressão específica em desfavor das mulheres negras. Ainda que Ponciá compartilhe com o seu marido algumas dores, há dores e violências que serão impostas somente a ela, inclusive violências perpetradas por ele. Ao mesmo tempo, Angela Davis, no livro citado acima, mostrará como as líderes brancas do movimento sufragista irão abraçar pautas racistas para não apoiar o direito do voto dos homens negros, pensando exclusivamente em seus próprios interesses, colocando os homens negros como inimigos dos direitos das mulheres, no caso das mulheres brancas. Tal situação, nos mostra novamente, como em determinadas situações, as mulheres negras se aproximarão mais da condição  e das pautas dos homens negros do que das mulheres brancas, o que mais uma vez faz repensar a figura do homem (no sentido "abstrato") como inimigo.

Sobre a criação do homem como inimigo, bell hooks, em "O feminismo é para todos", tenta explicar que:


"Mulheres individuais chegavam furiosas, vindas desses relacionamentos. E elas usavam essa fúria como catalisador da libertação das mulheres. À medida que o movimento progredia, à medida que o pensamento feminista avançava, ativistas femininistas intelectuais enxergavam que os homens não eram o problema, que o problema era o patriarcado, o sexismo e a dominação masculina. (p. 103)
(...)
Elas representavam todos os homens como inimigos, a fim de representar todas as mulheres como vítimas. Esse foco nos homens desviava a atenção dada ao privilégio de classe por ativista feministas individuais, assim como desejo de aumentar o poder de classe. Essas militantes individuais que incitavam todas as mulheres a rejeitar homens recusavam-se a olhar tanto para os de carinho que compartilhavam com homens quanto para os laços econômicos e emocionais (fossem positivos ou negativos) que conectam mulheres a homens que são sexistas" (p. 105). 

Esse mesmo olhar, contextualizando a conduta dos homens dentro dos espectros de raça e classe, também é exposto quando a autora conta a história do seu avô. O pai de Ponciá tinha muita raiva do vô Vicêncio, mas inicialmente não entendemos os motivos. Somente vamos entender a motivação da raiva entre pai e filho,quando descobrimos que o avô de Ponciá matou a sua esposa, avó de Ponciá. Não é possível compreender esse assassinato sem entender as marcas deixadas pelo passado escravocrata e a falta de perspectiva de mudança. Primeiro, é negado a família Vicêncio a própria identidade, já que o nome "Vicêncio" remete ao antigo proprietário do seu avô. A desilusão sofrida pela avô de Vicêncio, diante do aprisionamento daquela condição de não pertencimento e exclusão passará para Ponciá. São gerações que vivenciam a mesma dor:

"Os pais, os avós, os bisavós, sempre trabalhando nas terras dos senhores. A cana, café, toda a lavoura, o gado, as terras, tudo tinha dono, os brancos. Os negros eram donos da miséria, da fome, do sofrimento, da revolta suicida. Ela mesma havia chegado à cidade com o coração crente de sucessos e eis no que deu. Um barraco no morro. Um ir e vir para a casa das patroas. Umas sobras de roupa e de alimentos para compensar uma salário que não bastava. Um homem sisudo, cansado, mais do quela talvez, e desesperançoso de outra forma de vida. Foi bom os filhos terem morrido. Nascer, crescer, viver para quê?" (p.70-71). 

Mas, afinal, o que teria feito o Vô Vicêncio?

"O pai não gostava de Vô Vicêncio. Dizia mesmoo que ele era doido, assassino. Tinha matado a mulher e quase se matara depois, se não fosse acudido a tempo. Luandi sabia também que o avô fizera tudo aquilo em um momento de desespero. Não queria ser mais escravo. E só não matou o pai de Luandi, que era meno à época, porque ele conseguiu fugir em busca de socorro". (p. 62)
Quando li a primeira vez o trecho acima, eu não entendi. Foquei mais na situação como um feminicídio e menos como uma tentativa, ainda que drástica, de fuga. Fiquei pensando depois que não se trata de matar a esposa por motivação de gênero, mas pelo peso de uma condição que imobiliza e deturpa a perspectiva do ser humano ao ponto de preferir a morte. Situações semelhantes são narradas no livro da Angela Davis, "Mulheres, classe e raça", em que ela descreve que algumas mães matavam seus filhos e se matavam para não ter que vivenciar a condição de escravos.

Mais sobre a conduta masculina no livro:

"Ponciá achava que os homens falavam pouco. O pai e o irmão tinham sido exemplos do estado de quase mudez dos homens no espaço doméstico". (p. 57). 
A referência da mudez dos homens no espaço doméstico me chamou muito a atenção. Talvez fosse o cansaço ou, como a Angela Davis descreve, a mudez no ambiente doméstico pode ser resquícios do efeito da submissão e docilização dos corpos dos homens negros no sistema escravocrata:


"Assim, como mulheres negras dificilmente eram "mulheres" no sentido corrente do termo, o sistema escravista desencorajava a supremacia masculina dos homens negros. Uma vez que maridos e esposas, pais e filhas, eram igualmente submetidos à autoridade absoluta dos feitores, o fortalecimento da supremacia masculina entre a população escrava poderia levar a uma perigosa ruptura na cadeia de comando. Além disso, uma vez que as mulheres negras, enquanto trabalhadoras, não podiam ser tratadas como o 'sexo frágil' ou 'donas de casa', os homens negros não podiam aspirar à função de 'chefes de família', muito menos à de 'provedores da família'.


Também destaco o trecho em que Ponciá descreve que o marido dela sofreu uma transformação após a última surra violenta que lhe deu:


"Desde o dia em que homem de Ponciá havia batido nela tanto e tanto, a ponto de fazer sangrar-lhe a boca, depois, condoído do sofrimento que infligira à mulher nunca mais ela agrediu-a, e se tornou carinhoso como ela. Foi tanto pavor, tanto sofrimento, tanta dor que ele leu nos olhos dela, enquanto lhe limpava o sangue, que descobriu não só o desamparo dela, mas também o dela. Descobriu como eram sós". (p. 93)

O que me chamou a atenção no trecho acima é a possível e sutil interpretação de uma minimização da violência. Por outro lado, há uma proposta bonita de reconhecimento no outro, para se unirem a fim de enfrentar o histórico de dor e sofrimento que atinge os dois. Será uma forma de mostrar como a violência física que ele canaliza para ela  - que é inclusive uma reação a dor que eles sentem, mas que ele não sabe lidar - é uma grande estupidez autodestrutiva, já que no final eles só possuem uns aos outros? Será que até então não entendia a dor dela?

O livro é muito mais do que os pontos que eu destaquei acima. Ele passa pela história da mãe de Ponciá e sua busca pelo reencontro dos filhos. Também passa pela história de Luandi que tenta ganhar a vida como soldado, mas não se reconhece naquele mundo. 

É um livro triste, que tenta mostrar com uma prosa-poética, todo o drama de uma mulher negra, marcada pelo legado escravocrata e pela exclusão racial. O sofrimento, infelizmente, é a matéria prima do livro. Conceição não poupa formas de expressar isso, como ao final,em que a mãe de Ponciá, ao pensar na gestação da protagonista, questiona em seu pensamento: "Como aliviar o choro de um rebento ainda guardado, mas tão suplicante, que parecia conhecer as dores infindas do mundo?" 


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