Sobre o filme “A história de um casamento”
Depois
de muito tempo sumida, venho aqui escrever sobre o filme “A história de um
casamento” (Direção: Noah Baumbach).
Primeiro, acho que o filme perde muito sem uma analise sob uma ótica feminista. Ou pelo menos, sobre como o feminismo mudou a nossa percepção sobre o próprio divórcio. Muitas pessoas falam que o filme foca em um sentimentalismo e que outros filmes já trataram o tema de forma mais crua. Ainda assim, acho que o filme inova nas nuances, nos equilíbrios dos personagens e na forma como trata o divórcio a partir de aspectos postos a partir do contexto histórico atual. Pode ser uma leitura muito particular e que não se coadune com o que de fato o diretor pretendia, mas me arrisco.
Acho temerária também a ideia de demonizar a advogada que atua em defesa de Nicole.
Bem,
para quem não assistiu, cuidado porque eu vou dar muitos “spoilers”. Na verdade,
só recomendo o texto para quem viu.
O
filme, o tempo todo, tenta trazer os sentimentos e as perspectivas tanto de
Nicole (Scarlett Johansson), quando de Charlie (Adam Driver), sem reduzir os
personagens dentro dos estereótipos de uma ex-esposa megera e vingativa a todo
custo, ou um ex-marido super babaca e violento – o que não quer dizer que tais
figuras não existam rs. O filme trabalha como as nuances dos sentimentos deste
casal que está vivendo a separação e, por isso, é tão verossímil e doloroso.
E penso que ele só consegue fazer
isso porque absorve muitas das questões levantadas pelos movimentos feministas
(pensando aqui da forma mais abrangente possível, desde "me too" até os
movimentos por leis que criminalizam a violência doméstica).
O
filme nos engana nas primeiras cenas. Você se apaixona por aquele casal (não
tem como não se apaixonar pela Scarlett Johansson rs, o Adam Driver também, mas
a Scarlett está divina na sua atuação) e durante todo filme você é colocado a
questionar aquela suposta áurea de perfeição. E somos questionados em pequenas
doses, Charlie não é um pai ausente, ele não agride Nicole, ele não levanta tom
(pelo menos, inicialmente) etc. Do outro lado, Nicole parece corresponder às
expectativas de Charlie, se dedica a ele e ao filho. Mas, aos poucos as tensões
vão se revelando, mesmo dentro desse relacionamento, supostamente tranquilo, Nicole
não tem suas necessidades acolhidas pelo parceiro. Na verdade, ela se sente
sufocada. Na cena em que ela procura a advogada (interpretada pela atriz Laura
Dern) e mal consegue contar a história de seu casamento, a sensação dela estar
se sentindo isolada e sozinha é marcante. Na mesma cena, quando ela diz para
advogada algo como “Charlie não é uma pessoa má”, fica forte a ideia de que não
se trata propriamente de demonizar Charlie – e a advogada atua bastante nesse
sentido - mas de compreender o desequilíbrio presente na relação que possuíam,
na qual Nicole não era vista no mesmo patamar de importância, já que Charlie
não dava vazão aos seus interesses, como ser diretora, voltar para Los Angeles
etc.
Esse desequilíbrio presente nas
relações, em que um fica sempre em segundo plano, quando se torna algo
constante se solidifica em uma desigualdade que alicerçada pelas relações desiguais de poder. Ora, fazendo um
paralelo com o filme, não é à toa que durante toda a história do Oscar apenas uma mulher ganhou a estatueta em melhor direção (e,
diga-se de passagem, venceu o seu ex-marido). As relações desiguais de poderes
entre homens e mulheres marcam todas as profissões, as mulheres não são vistas
como capazes de assumir cargos de direção, como produzir um filme ou uma peça. O
que quero dizer é a desigualdade presente no micro espaço anda casada com a
afirmação dessa mesma desigualdade no âmbito macro das relações sociais. Sobre o machismo em Hollywood recomendo o documentário "Luz, Câmera e machismo!" (Half the picture), dirigido por Amy Adrion.
Assim,
a grande perspicácia do filme é ir revelando aos poucos como a relação entre Charlie
e Nicole é tóxica mais para Nicole do que para Charlie. Isso não quer dizer que
Charlie não tenha suas insatisfações sobre o relacionamento, ou mesmo que não
irá sofrer (como de fato sofre) com o término da relação, mas a verdade, pelo
que fica nítido no decorrer do filme, é que Nicole não tem escuta dentro da
relação, o que vai colocando ela para o segundo plano.
Acredito
que a própria posição de Nicole como atriz das peças de Charlie pode ser mais
um sinal da relação quase “sujeito-objeto” estabelecida entre eles. Isso fica
bem demonstrado na forma como ele passa as “dicas” para ela depois da encenação
teatral.
As cenas litigiosas
são angustiantes porque pensamos “eles não querem dizer isso um para o outro”.
Contudo, mais uma vez, vejo que o filme é muito cuidadoso e atende bastante as
novas visões trazidas pelos movimentos feministas. A advogada de Nicole, embora
cometa alguns exageros, é fundamental para Nicole conseguir formular seus
descontentamentos e para defender suas vontades. Até Nicole ir conversar com a advogada,
ela não conseguia perceber e formular para si o quanto suas vontades nunca eram
consideradas. É muito boa a passagem em que a advogada questiona Charlie com
algo do gênero “quando se trata de seus interesses, as conversas entre vocês
são acordos, mas quando se trata dos interesses de Nicole, são apenas
conversas”. Mais para frente, na briga mais intensa entre o casal, naquele
apartamento vazio que Charlie aluga, Nicole chega a dizer “você faz gaslighting comigo”.
Por
outro lado, o primeiro advogado que Charlie procura (e que irá retornar) não
tenta ouvir Charlie e está pouco preocupado com seus sentimentos ou em resolver
o problema da forma mais harmoniosa. Ele pensa em como vencer e conseguir
dinheiro. Já o segundo advogado, que no meu ponto de vista é um personagem
muito bem colocado - e penso representar como de fato um advogado de família
deveria tentar atuar - é muito mais
acolhedor e sensato ao dizer para Charlie que “tudo bem” não tensionar ainda
mais a relação durante a separação, que “tudo bem” fazer concessões e que com
tempo a situação iria melhorar. Mas você pode questionar: era o filho dele em
jogo, como assim “tudo bem”? Nem eu ou o advogado do filme pensamos que Charlie
deveria não desejar ficar com filho, mas a questão é: querer ficar com o filho
passava por abrir mão de algumas coisas da sua vida (como a vida profissional
que Charlie colocava acima de tudo), ainda que provisoriamente; passava por
Charlie não ser o centro de tudo. E Charlie se comportava dessa forma: tinham
que morar em Nova Iorque; a fantasia do Halloween tinha que ser a que ele
escolheu; o dinheiro que Nicole receberia da série deveria ser revertido para a
peça que tinha o nome dele; na narrativa dele, somente ele abriu mão de ficar
com outras mulheres (como se ela também não tivesse perdido oportunidades) e
fez um favor a ela por traí-la uma única vez, já que poderia ter traído muitas
outras vezes etc.
Assim,
entendo que o segundo advogado que Charlie visita, estava tentando passar essa
mensagem para ele, quase que mostrando que aquele seria o momento correto para
ele fazer concessões, mudar o comportamento.
Também
vale ressaltar a sutileza da cena, que envolve a tentativa de acordo entre
eles, quando Charlie fica paralisado e não sabe sequer o que vai escolher para
comer. Essa cena demonstra, para mim, tanto a dificuldade de Charlie conceber o
fato de Nicole não querer mais ficar com ele, quanto uma relação dependência com
Nicole para o atendimento de suas necessidades (o que se confirma com a cena da
cadeirinha no carro, do cadarço etc). Penso que ele não tinha dimensão de
quando Nicole sustentava suas necessidades. E, por outro lado, se insatisfeito
com a relação, ou no mínimo descontente, a ponto de trair Nicole, não teve a
coragem de assumir seus sentimentos, o que também reflete uma falta recursos
presente em muitos homens.
Enfim,
Charlie volta para o advogado mais beligerante e, em juízo, a situação fica
mais apelativa. Sobre esse ponto, teria muitas questões. Primeiro, a maioria
das pessoas, principalmente as mulheres, não possuem condições de pagar
advogados/as, o que é dito pelo próprio juiz no filme. Ou seja, muitas das
mulheres não vão conseguir levar em juízo tantas das questões trazidas pela
advogada de Nicole, tampouco se defender daquela forma. Porque, na realidade,
embora ainda seja presente a ideia de que as mulheres são maternais e que por
isso devem permanecer com a guarda dos filhos, há um movimento contrário que
busca utilizar dos estereótipos negativos atribuídos às mulheres ou mesmo da
pressão social imposta às mães (o que é brilhantemente trazido pela advogada interpretada por Laura Dern) para quase criminalizadas
nesses processos de guarda, como é no caso da acusação de que Nicole bebia.
Ainda
sobre esse aspecto, na cena em que Nicole começa a dizer sobre como ela é como
mãe, fiquei angustiada, pensando “como assim a advogada não a orientou para não
dizer que bebe; ela não pode titubear sobre uso de drogas etc”. Logo em
seguida, a advogada para tudo e faz um discurso excelente sobre como as mães
não podem mostrar suas imperfeições, porque serão julgadas com muito mais
severidade do que os homens.
Nicole,
diante do agravamento da tensão entre o casal, vai até a casa de Charlie para
tentar uma conversa. Essa conversa se torna uma das brigas mais intensas do
filme, culminando com um soco na parede de Charlie e uma fala dizendo que
deseja a morte de Nicole. Essa cena dá margem para várias reflexões, mas eu
fiquei pensando na violência presente na cena. Justamente pelo filme não colocar
Charlie como um sujeito violento, o soco na parede e o desejo de Nicole não
existir demonstram o quanto, nestas situações limites, parece que o homem
acuado por estar “perdendo” (e Charlie expressa isso, diz que estava perdendo e
Nicole logo em seguida diz que ela já perdeu, porque a relação acabou) acaba
apelando. Em outras situações, infelizmente, sabemos que o soco não é na parede
e a morte não é só desejada. É durante o término das relações que as mulheres
vivenciam as situações mais graves de violência.
A
derrota de Charlie está presente na cena tragicômica com a assistente social.
Vejo essa cena não como uma constatação de que Charlie não é um bom pai, mas
que efetivamente ele também não escuta o filho, que estava feliz com a mãe e
novos amigos. Sem compreender as necessidades do seu filho, seu esforço não
iria levar a nada
Charlie
se conforma e busca um acordo com Nicole. Na sequência, vêm as cenas finais
brilhantes, Charlie é surpreendido pelo novo namorado de Nicole, que já
conquistou sua ex-sogra (e nesse sentido, é interessante notar como o filme
mostra que, apesar da ex-sogra gostar de Charlie, ela de fato só é carente e
outro pode preencher sua carência), mas Charlie ainda é mais surpreendido
quando descobre que Nicole foi indicada ao prêmio de melhor diretora no Emmy.
Charlie sequer considerava ver Nicole nesta posição. Penso que essa consagração
de Nicole como diretora está relacionada com todo movimento das atrizes e
diretoras em Hollywood por ganharem mais representatividade. De novo, é o micro
e o macro se relacionando.
Charlie
participa do Halloween como fantasma, o que para mim indica essa necessidade dele
fazer um movimento para o segundo plano, dele entender que agora era o momento
dela. Isso também se confirma quando ele diz que virá para LA, ou seja, ele
parece entender que se ele quer ficar próximo do seu filho, terá que fazer
alguns ajustes.
Ainda,
no final, Charlie se depara com a carta feita inicialmente por Nicole sobre as
razões pelas quais ela se apaixonou por ele. Acho essa passagem importante
porque a carta está sendo lida para o filho, penso que para o filho é um
momento de conexão, para ele saber que seus pais já tiveram essa conexão. Penso
que a carta vem para afastar um pouco a beligerância e permitir a existência do
laço entre pai e filho, que terá de algum modo influência materna.
Ainda, é pertinente fazer um paralelo com o filme “A esposa” (direção: Björn Runge). A esposa, interpretada pela incrível Glenn Close, que tem todo
seu trabalho intelectual apropriado pelo marido, é a Nicole que não conseguiu
sair da relação. Por isso, vejo “A história do casamento” como uma leitura de
uma separação em um momento histórico em que as mulheres conseguem trazer à
tona as sabotagens que vivenciam no casamento, nomeando-as (diferente lá de
“Kramer VS Kramer”, dirigido por Robert Benton, em que a personagem de
Meryl Streep não tem tanta clareza sobre sua angustia), o que é consagrado pela busca de Nicole em
sair daquele lugar que lhe era oferecido e limitado.
Por
todas essas razões, ainda que outros filmes tragam questões mais tensas sobre as
perversidades que um casamento pode gerar, arrisco dizer que poucos trarão essa
abordagem construída dentro de uma ótica de ressignificação dos papéis de
gênero, por conta das mudanças atuais revindicadas pelas mulheres e movimentos
afins.
Por
fim, ressalto que o filme retrata o amor, porque qualquer história de amor que
não pense nas concessões e escolhas que são feitas para sustentar uma relação
não é verdadeiramente uma história de amor. Mas que essas concessões não sejam
nunca exigidas apenas por um dos lados e que elas sejam feitas dentro de um
ambiente mais democrático possível, onde ambas as partes tenham suas vontades e
desejos considerados.
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