Comentários sobre a autobiografia da Rita Lee.


Depois de quase um ano, escrevo novamente. Espero que a partir de agora o projeto de escrever mais sobre os livros e filmes vá para frente.

A última leitura que fiz foi sobre o autobiografia da Rita Lee.

Devo dizer que o meu objetivo é ler os livros sob uma ótica feminista. Ou seja, tento buscar ler e observar a realidade a partir de uma lente que traz alguns pressupostos: tentar não essencializar e generalizar as supostas diferenças entre homens e mulheres, que muitas vezes fundamentam a desigualdade de direitos e oportunidades entre os gêneros; não corroborar para uma visão estereotipada das mulheres; não acirrar uma visão difundida de que mulheres vivem disputando entre si; buscar o alinhamento do feminismo com pautas pela diversidade sexual, igualdade racial e justiça social; compreender como a história narrada favorece ou não a autonomia das mulheres etc. É uma tentativa de sempre buscar uma perspectiva que envolva as seguintes perguntas: esse livro (ou filme) retratou a história de uma mulher de forma autônoma ou reforçou uma visão machista?; o que a história diz sobre as pautas das mulheres? há situações de discriminação que ocorreram pelo fato da personagem ser mulher?; os fatos seriam mesmo se o protagonista fosse homem?

É importante retratar essa "ótica feminista" porque irei mencioná-la em outras opiniões sobre livros/filmes.

Dito isso. Vamos ao livro da Rita Lee. Informo que farei comentários destinados a quem leu o livro.  =)

Antes de tudo, devo dizer que passei a admirar muito mais a Rita Lee depois de ler sua autobiografia. Conhecer a sua história, passa por reconhecer que ela foi uma mulher percursora dentro do cenário musical brasileiro, principalmente na sua vertente musical: o "roquenrou", como ela mesmo chama. Ainda, é impossível não notar todo preconceito e obstáculos que passou exatamente por ser mulher. Embora ela não escreva dessa forma, o fato de ter sido praticamente expulsa dos "Mutantes" porque ela não era "roquenrou o suficiente" e a necessidade constante durante sua carreira de demonstrar que ela era capaz de participar de uma banda de rock, sem dúvida, está atrelada ao fato de ser mulher.

A intenção não é tentar caracterizar Rita Lee como feminista ou não, até porque ela mesmo diz que não se identifica dessa forma. A questão é que, conscientemente ou não, algumas mulheres, por serem as primeiras a enfrentarem um espaço demarcado por homens, acabam rompendo barreiras que são delineadas pelo machismo e pela ideia "daquele espaço" não pertencer as mulheres. E a Rita Lee, mesmo não se revindicando enquanto feminista, contribuiu para ampliar as possibilidades das mulheres na música e romper preconceitos.

No inicio de sua autobiografia, Rita Lee retrata sua infância. É surpreendente a descrição da família extensa e majoritariamente feminina da Rita Lee, formada pelo seu pai Charles e cinco mulheres ("Chesa, minha iluminada mãe; Balu, minha fada madrinha; Carú, minha bela irmã adotiva italiana; Mary Lee e Virgínia Lee, duas hilárias manas de sangue"). Ao longo de sua história, fica evidente que essas mulheres foram o suporte material e afetivo necessário para que Rita Lee pudesse se dedicar a música, seja porque cuidaram dela nos momentos difíceis, seja porque cuidaram de seus filhos. O pai da Rita Lee também é uma figura de apoio, mas de outro modo, ela o apresenta como um aspecto de autoridade e, ao mesmo tempo, uma referência de comportamento.

Após 12 páginas, Rita Lee relata que na sua infância (mais ou menos com seis anos, não diz com precisão) sofreu uma violência sexual e que desde então sua mãe e irmãs passaram a lhe tratar de forma diferente, relevando seus erros em razão da violência que passou. Talvez, Rita Lee busque, ao relatar esse episódio, explicar os motivos pelos quais sua criação foi diferente das suas outras irmãs e, por outro lado, ao ironizar o lugar de vítima, tenta rechaçar essa posição, como fará ao longo de todo o livro.

Nesse ponto, convém dizer que muitas mulheres acabam relacionando o feminismo à vitimização das mulheres, como se ao identificar que mulheres sofrem violências e desigualdades específicas estariam fixando a mulher numa posição de vítima. A ideia de que o feminismo quer vitimizar as mulheres e criar muito "mimimi". Muitas mulheres temem que, ao contarem uma história de violência sexual, passem a ser sempre identificadas por aquele episódio e tratadas como fragilizadas. Por isso, é importante dizer que os feminismos não pregam a vitimização da mulher, ou seja, a fixação da mulher no lugar de vítima. O ideais feministas buscam não silenciar as mulheres e reconhecer as violências praticadas contra as mulheres como uma forma de valorização da história e do protagonismo das mulheres. Infelizmente, tal caminho passa por, em alguns momentos, reconhecer situações de violência em que as mulheres foram vítimas. Mas, há uma grande distinção entre reconhecer que em determinadas situações mulheres são vítimas do machismo e da violência de gênero e serem "vítimas" da própria história. Talvez, Rita Lee tente buscar essa distinção. De qualquer modo, sem dúvida, a iniciação da vida sexual de uma menina por meio de um estupro deixa marcas irreparáveis, que mesmo o bom humor da Rita Lee não pode reduzir tal fato.

Rita Lee, de maneira geral, parece ter tido uma infância feliz e, apesar da figura de ex-sargento do pai, relata ter uma certa liberdade quando era pequena, o que não era tão esperado para meninas naqueles tempos.
Mas é preciso dizer que a Rita Lee pertencia a uma classe social alta, o que, sem dúvida, lhe proporcionou mais liberdade. Ela entrega boas nostalgias da infância.

Desde pequena, Rita Lee se descreve como uma "menina-moleca", em suas palavras: "todas as meninas da minha idade já usavam sutiã, tinham pentelhos e já era 'mocinhas', enquanto eu continuava uma tábua despelada e masculinizada, aquela que os meninos por quem se apaixonava tratavam como igual". Acredito que Rita Lee descreve um sentimento que muitas meninas já passaram, o sentimento de  não estar alinhada ao que se espera de uma "menina". Por um lado, tal sentimento aparece como um desajuste, por outro, traz privilégios, porque uma "menina-moleca" acaba podendo transitar mais pelos "territórios" pertencente aos meninos. Penso que talvez hoje essas fronteiras estejam menos delimitadas, considerando todas as mudanças que o feminismo trouxe a partir de lemas como "o lugar da mulher é onde ela quiser". Contudo, na infância e adolescência ainda pesa a necessidade de identificação e muitos ainda cobram das meninas as condutas esperadas de uma "mocinha". A questão não é ser ou não "mocinha", mas de poder potencializar os caminhos que as meninas podem percorrer nos esportes, nas ciências, nas atividades criativas, ao invés de só brincarem de bonecas e aguardarem o príncipe encantado desde pequenas.

Rita Lee, sem dúvida, não ficou aguardando ninguém. Seguiu seu interesse musical, sua criatividade e foi atrás do seu "roquenrou". É muito inspirador e inovador que lá nos meados do nos anos 60, Rita Lee tenha formado uma banda com três mulheres, " Teenage Singers". Tal banca se juntará com os futuros integrantes dos Mutantes, restando no final apenas a Rita Lee como integrante mulher.

A verdade é que Rita Lee se adentrou num terreno musical formado majoritariamente por homens. E, pelo que tudo indica, acabou por muito tempo sendo a única mulher com maior destaque nesse meio. Daí pensar, será que Rita Lee foi uma "cool girl" do rock brasileiro? Primeiro, é preciso explicar o que é "cool girl". Pego esse termo emprestado desse texto: http://www.revistacapitolina.com.br/a-cool-girl-e-as-representacoes-de-genero-na-midia/. A ideia da "cool girl" é daquela mulher que é bem aceita entre os homens, porque não gosta de coisa de "mulherzinha", tira sarro das mulheres muito femininas e aguenta qualquer parada. Para mim, um dos pontos mais característico desse perfil, é ela ser a única do grupo masculino, é "smurfette" do rolê dos meninos ou a "cota feminina" no rolê. Rita Lee traz um pouco desse perfil em sua autobiografia? Por alguns momentos eu pensei que veria isso, mas seria injusto rotular Rita Lee dessa forma. Ela é muito mais generosa com as mulheres no seu entorno e plural. A verdade é que ela, como muito bem se descreve, não pode ser rotulada.

Ao mesmo tempo em que Rita aparece um pouco isolada enquanto mulher no meio do rock, ela descreve várias tentativas de trazer outras mulheres (como a incrível tentativa de convidar a Sonia Braga, página 66,  e a banda "Cilibrinas do Éden", na qual dividia o palco com Lúcia Turnbull), relata admiração por outras mulheres (como Wanderléia, Leila Diniz, Elis), também relata uma paixão surreal pela Hebe Camargo e descreve preconceitos que passou por ser mulher, inclusive ao ser expulsa dos Mutantes ou quando se descobre grávida (e sua empresária diz "o que as cocotinhas vão acha? seu público é so de meninada. conheço uma ótima clínica, não há outra saída"). Ela definitivamente não queria só ser uma "cool girl".

Por outro lado, não há como não notar episódios machistas retratos por Rita Lee. Há relatos graves, como no capítulo "a loira gelada", em que Rita descreve um episódio de assédio sexual realizado pelo irmão mais velho dos rapazes dos Mutantes a uma empregada doméstica. Ainda, Rita Lee pesa a mão  quando fala das "traições" de Arnaldo: "Groupies adoram dar para artista casado, sentem-se importantes. Desagradável mesmo era quando engravidavam e vinham chorar, arrependidas". Rita parecer não identificar a posição de poder de Arnaldo como problemática nessas relações com as "groupies" e culpabiliza as mulheres.

É sinônimo da autosabotagem que acontece com as mulheres, Rita Lee dizer que fazia o papel da "bonaitária, mas orditinha" nos Mutantes, mesmo quando reconhece que contribuiu com "80% das letras , 40% das músicas, 30% dos arranjos e 100% dos figurinos". Claramente, teve um papel essencial na banda.

Com todo o cuidado para não se vitimar, Rita Lee descreve que a sua expulsão dos grupo Mutantes, estava relacionada com o fato de ser mulher. Segundo ela Arnaldo disse: "A gente resolveu que a partir de agora você está fora dos Mutantes porque nós resolvemos seguir na linha progressiva-virtuose e você não tem calibre como instrumentista". Se mantendo firme, Rita Lee relata que em vez de pedir "perdão por ter nascido mulher", fez "a silenciosa elegante".

A passagem mais bacana, em termos de união de mulheres, é relacionada a banca "Cilibinas do Éden", na qual a Rita Lee flerta com a banda "Baseado Nelas" para uma lance de "minas roqueiras".

Depois disso, Rita Lee se reinventou diversas vezes, se encontrou no rock e MPB. É incrível a parceria pessoal e de trabalho com Roberto. Rita Lee também é muito corajosa quando fala sobre a maternidade, sem se culpar e sem se discriminar, considerando que teve que se dedicar a carreira, tal como ocorre com muitos homens pais. Diversos episódios poderiam ser destacados, o companheirismo com a Elis, sua prisão grávida, a sua declaração a favor do direito das mulheres poderem interromper a gravidez (página 165), as retaliações que sofreu na mídia pelo seu comportamento transgressor, sua participação no "Mulher 80", entre outros. Sem dúvida, Rita Lee foi uma mulher a frente de seu tempo, que aos trancos e barrancos, contestou as normas vigentes de gênero e buscou disseminar alegria por meio da sua arte.

















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