Comentários sobre "Hannah e suas irmãs"



"Hannah e suas irmãs" é um filme de 1986, escrito e dirigido por Woody Allen. Irei tentar fazer alguns breves comentários sobre o filme a partir de uma perspectiva feminista. Acredito que quem já assistiu ao filme entenderá melhor e, para quem não assistiu, informo que darei "spoilers". =)

Porque tentar discutir um filme do Woody Allen?(que não é nada querido entre as feministas, com razão - leia esse texto que explica grande parte dos motivos pelos quais as feministas repudiam Woody Allen e sua obra: A caça às bruxas está vindo para você, Woody Allen).

Antes de começar a refletir sobre o filme, vale a pena a leitura da carta da filha adotiva da Woody Allen: Leia a íntegra da carta em que Dylan Farrow acusa Woody Allen de agressão sexual.

Após a leitura da carta, é difícil assistir aos filmes de Allen com os mesmos olhos. 

A verdade é que eu assisti ao filme duas vezes nesse mês para uma aula sobre estudos de cinema. O filme foi passado e comentado na aula com a intenção de perceber como a história das personagens é construída pela narrativa dos três atos ("jornada do herói") e como há um entrelaçamento "perfeito" do roteiro. 

Bem, não sou do mundo do cinema (sou formada em Direito). Mas, sou uma apreciadora de filmes e curiosa do cinema. E, sobretudo, sou feminista, o que significa dizer que tento ler a realidade buscando reconhecer e denunciar as desigualdades entre homens e mulheres. Acredito em um feminismo que construa um mundo onde as mulheres tenham os mesmos direitos que os homens e possam estar representadas livres de estereótipos machistas. Além disso, penso que o feminismo deve sempre vir atrelado a diversidade sexual e igualdade racial. 

É importante enfatizar essa minha visão porque é partir desses pressupostos que tento pensar o filme. Assim, achei interessante refletir sobre esse filme realizado nos anos 80, que em tese visa romper com um certo "moralismo" das convenções amorosas e tem, também em tese, personagens femininas protagonistas. Nos anos 80, as mulheres já haviam presenciado a segunda onda do movimento feminista e havia uma reação conservadora em diversos campos.

Também acho importante pensar no Woody Allen não apenas como o sujeito que casou com sua filha adotiva e foi acusado de violentar sexualmente sua outra filha, mas também o que sua obra reflete em termos dos papéis de gênero. Quero tentar demonstrar como aquela máxima de que é preciso separar o autor da obra nem sempre é possível de ser realizada, considerando que o próprio autor faz questão de passar sua visão de mundo no filme, sendo tal visão machista.

Primeiro, já poderiam me acusar dizendo: a proposta do filme é "humanista", é retratar os desejos e afetos proibidos, a forma como a família é constituída e as questões existenciais de um homem desiludido, no caso, o próprio Woody Allen e você me vem falar de feminismo no filme?

Sobre essa questão: será mesmo que o Woody Allen está rompendo com um certo "moralismo"? O que diz esse suposto "humanismo" de Woddy Allen? É possível falar em "humanismo" sem evidenciar as desigualdades impostas a homens e mulheres?

O "plot" do filme gira em torno do personagem "Eliot", marido de "Hannah (que embora dê nome ao filme, é uma figura apagada, que serve apenas como "elo" das histórias masculinas como veremos a seguir), que se apaixona pela cunhada, "Lee". A irmã do meio, Holly, é uma mulher insatisfeita profissionalmente, dependente química, que tenta uma carreira como atriz.

Para mim, logo no primeiro momento, é preciso refletir como seria a história se fosse uma esposa que se apaixonasse pelo seu cunhado. Teria todo esse "glamour" e romantização como tem no filme? Como seria o filme se Hannah se apaixonasse por um irmão de Eliot? Claramente, imaginaríamos um final trágico em que ela acabaria assassinada por Eliot e execrada pela sociedade. É claro que é mal visto socialmente que um marido se apaixone por sua cunhada, mas a verdade é que esse desejo de ficar com a irmã da sua esposa, por alguma razão, parece já ter sido sussurrado no nosso imaginário. O que eu quero dizer é: ainda que assistindo o filme, logo no início, haja uma reprovação de Eliot por querer ficar com a irmã de Hannah, a verdade é que a tentativa do filme de levar o/a espectadora a "compreender" esse desejo passa por normalizar os desejos masculinos como elásticos, sendo que tais desejos já são em si mais aceitos pela sociedade. Não há nada de transgressor ou de ruptura nisso. "Humanizar" o machismo não é uma quebra de moralidade.  É uma forma de machismo bem sutil. Isso porque Allen passa a ideia de estar transgredindo ao retratar um relacionamento proibido, que quebra a moral da família, no entanto, isso tudo ocorre dentro de um padrão bem claro: o marido que se apaixona pela irmã fogosa. Quem já não ouviu falar disso? (Lembro aqui da cena do filme "Frida" e de como a personagem fica transtornada quando descobre que o marido transou com a irmã). Mas Woody Allen faz tudo parecer romântico, ao som de Bach, enquanto Hannah faz os afazeres domésticos.

Mas, você pode dizer, Hannah faz o "papel" social que gosta, uma vez que ela é maternal, recebe a todos, cuida de 4 filhos, não briga com ex-marido que não paga pensão (o ex-marido dela é o Mickey, interpretado por Woody Allen, que fala que não paga pensão para os seus 2 filhos com um tom irônico), porque, afinal de contas, ela gosta de ser assim. Será mesmo?

Hannah aparece o tempo todo presa ao papel de boa mãe, boa esposa, boa irmã e de boa atriz (sua profissão). Ela sempre está disponível a ajudar a família, mas a sua disponibilidade e excesso de assertividade é utilizada contra ela, durante o filme. Eliot, quando pressionado se está tendo um caso, culpa Hannah de ser muito "autossuficiente". No início do filme, no jantar de família é comentado que Hannah está atuando na peça "Casa de Bonecas", peça de Henrik Ibsen, que narra a história de uma mulher que questiona o casamento e os seus valores patriarcais, já que é tratada como uma "boneca" pelo marido, o que leva a abandonar marido e filhos. Talvez não seja por acaso tal menção, é possível que o diretor busque aproximar a condição de Hannah com a personagem da peça, mas sem demonstrar qualquer libertação ou mudança de postura de Hannah.

Há quem possa dizer que o filme procura refletir sobre questões existenciais a partir da história do personagem Mickey (interpretado por Allen). Esse personagem neurótico é tragicômico, contudo, não convence. Tenta buscar de forma rasa respostas para sua existência nas religiões e não encontra, sendo que ao final, em uma cena dentro de um cinema, chega a conclusão que vale a pena viver, porque a vida não é de todo mal. É um personagem extremamente autocentrado e sua reflexão sobre a existência acaba sendo estrita, considerando que sequer tem compromisso com a existência de seus filhos.

A personagem Lee parece ser retratada como a jovem que tem vontade de relacionar com homens mais velhos que irão lhe cuidar. Mas não entendemos seus medos ou seus desejos. Inicialmente, ela tem um relacionamento com seu ex-professor excêntrico, "Frederick", que lhe trata como uma imbecil que precisa ser educada. Sabemos que ela teve problemas com uso de alcool e que sua mãe também teve esses problemas. Depois, ela aparece retratada mais como objeto de desejo de Elliot e não como um ser completo. Lee fica presa a Elliot durante quase todo o filme, sendo que só consegue terminar com ele depois de se envolver com outro personagem mais velho.

Holly é talvez a personagem feminina mais interessante, porque é mais complexificada, tem mais interesses e suas vontades são mais colocadas no filme. Contudo, no final, tudo parece se resumir a encontrar um bom parceiro que irá lhe ajudar na nova empreitada como roteirista. Esse parceiro só poderia ser o próprio Allen.

No final, estranhamente o personagem de Allen, que tinha sido diagnosticado como estéril, recebe a notícia de que Holly está grávida. Foi explicado que a intenção do diretor era passar esperança, diante da possibilidade de "milagres" existirem. No entanto, embriagada pela situação das mulheres do filme, só consegui pensar que a Holly poderia ter traído Allen ou a culpa era de Hannah (mais uma vez), tendo sido diagnosticado erroneamente.

Ainda, há uma frase que é dita no filme pelo Elliot que aparece com um sentido para ser contemplada "o coração é um músculo muito, muito elástico". Mas essa frase vale para quem? Digo isso porque o filme embora leve no seu título a indicação de três mulheres parece priorizar os sentimentos masculinos. Será que as mulheres são tao livres para amar? Será que Hannah poderia deixar os seus quatro filhos e ir ficar com o irmão do Mickey, por exemplo? Qual o peso adicional que está colocado para as mulheres quando amam? Podem contra argumentar que "sentimento" não tem hora e lugar para acontecer, será que não? O que os sentimentos revelam sobre nós e nossas formas de ser no mundo? Será que os desejos masculinos são construídos da mesma forma que os desejos femininos? Embora seja bonito pensar o "amor" como algo sem limites e transcendental, a verdade é que ele também é uma construção humana e ele também vem marcado pelo machismo. Desse modo, ainda que seja poético pensar em um "coração elástico", "sem fronteiras", tal idealização vem na verdade iludir e escamotear a falta de responsabilidade dos homens em seus relacionamentos. Mesmo para amar é preciso ter responsabilidade e coragem para lidar com seus desejos de forma leal e companheira. Para mim, amor é companheirismo e respeito e filme pouco fala sobre isso. O filme é o retrato de homens tentando satisfazer seus desejos. Ele deveria chamar "Elliot e seus homens".






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