"Dias de abandono": término em carne viva.
Não é possível falar de "Dias de abandono", da
escritora Elena Ferrante, sem mencionar o abandono que todas as pessoas,
sobretudo as mulheres, vivenciam (ou podem vivenciar) em seus relacionamentos.
Desde muito pequena, vivenciei o abandono do meu
pai. Mais do que ter me abandonado aos 10 meses, ele abandonou minha mãe e
todos os projetos que ela tinha construído em torno desse relacionamento. Tal
como Olga, personagem da narrativa de Ferrante, minha mãe passou pelo desterro
do término ao descobrir que seria trocada por outra pessoa. Minha mãe tentou de
tudo para se recuperar e cavou fundo, assim como Olga e muitas mulheres. Agora,
esse sentimento de "mulher traída", pouco relatado, meio sem lugar,
ganha uma força impressionante neste livro, que narra de forma dilacerante o
sentimento de raiva, de entorpecimento, desorientação, de falta de vontade de
viver e os impulsos mais odiosos que surgem dentro de Olga. Dar espaço a esse
sentimento que muitas mulheres vivenciam, sem julgamentos, deixando aparecer as
contradições, é libertador em uma sociedade em que aos homens é autorizado e
estimulada a traição e às mulheres é ensinado perdoar, esperar e se recompor,
respeitando os limites da moral aceita.
Bem, como já é possível perceber, o livro narra
os dias de Olga após ser abandonada por ser marido, Mario, com quem viveu por
15 anos. Na verdade, Olga narra seus próprios dias, nos falando sobre seus
sentimentos, frustrações e pensamentos. O casal possui dois filhos, Gianni e
Ilaria, e um cachorro, Otto, que passarão a ficar sob os cuidados de Olga, já
que Mario sai de casa, sem dar muitas explicações, para ficar com uma mulher
mais jovem, Carla, uma ex-aluna de Mario. Ele, de fato, abandona a família por
um tempo, não deixando contato, tampouco esclarece seus motivos.
Quando Olga se vê na situação de mulher
abandonada a primeira imagem que se recorda é de uma mulher que conheceu na
infância, a qual era chamada por sua mãe e amigas de "pobre coitada",
porque seu marido havia lhe abandonado: "A mulher perdeu tudo, até
o nome (talvez se chamasse Emília), se tornou para todos 'a pobre coitada',
começamos a falar dela chamando-a desse jeito. A pobre coitada chorava, a pobre
coitada gritava, a pobre coitada sofria, dilacerada pela ausência do homem vermelho
suado.." (p. 12).
A referência invocada por Olga poderia vir à
tona para muitas pessoas, porque a mulher traída, deixada pelo marido, passa a
ser a "pobre coitada". Ferrante, então, vem nos fazer refletir sobre
a forma que julgamos as mulheres em relação aos seus relacionamentos e não por
seus feitos. É claro que homens também são julgados, mas de forma diferente.
Geralmente, homens traídos precisam vingar sua "honra", o que os faz
cometer condutas violentas, chegando a casos de feminicídio. E, sem dúvida, a
mulher que trai será eternamente demonizada e o homem traído será glorificado
por qualquer superação que venha a ter depois; ele não é um coitado, é uma
vítima, que merece ser compensada. Já a "mulher coitada", com
certeza, deve ter falhado de alguma forma.
A figura da "pobre coitada" também é
importante poque Olga não quer se parecer com aquela mulher que conheceu na sua
infância. Ela julga como "idiotas" as mulheres que sofrem assim em
razão do término do relacionamento, mas quando vê está em uma situação semelhante,
o que nos faz pensar sobre os julgamentos cruéis e machistas que podem (e são)
perpetuados pelas próprias mulheres.
Outro mérito do livro é trazer, como a própria
Elena Ferrente descreve "as consequências práticas dos abandono"[1] (p. 16). Ferrante não
descreve em abstrato o abandono de Olga, ela desce no cotidiano, trazendo o
efeito do abandono nas pequenas coisas, como passear com cachorro, matar um
lagarto ou simplesmente abrir a fechadura. Ela provoca na pele o sentimento de
vazio e desorientação dos dias que seguem após uma pessoa tão próxima sair da
sua vida. Mais ainda, ela irá pontuar todas as tarefas diárias que passarão a
ser assumidas por Olga e como isso lhe sobrecarregará, principalmente, nesse
momento de tristeza.
Em várias passagens, Olga também reflete sobre o
investimento que dispensou em um relacionamento que não deu certo e das
renúncias que precisou fazer: "as ambições da juventude se desfaziam
como uma roupa surrada"[2].
Um ponto delicado, mas extremamente verossímil,
é o tratamento sem filtros que Olga aplica aos filhos quando aborda o abandono
do pai. Em um momento, quando aparece um lagarto na casa, a filha Illaria
fala "quero papai", Olga, de uma forma um tanto cruel, diz: "Seu
pai nos deixou. Foi embora viver em outro lugar com outra mulher, nós não
servimos mais para ele" (p. 25). Alguns poderiam dizer que esse diálogo
entre Olga e a filha se caracterizaria como um início de alienação parental.
Afinal, o pai não abandonou os filhos, apenas não quer mais conviver com a
ex-esposa. Por outro lado, será que é possível exigir tamanha imparcialidade e
distanciamento em um momento como esse?
Nessa linha, Ferrante não hesita em deixar transparecer
o pensamento e a contradição de Olga que pensa em utilizar os filhos para
chamar a atenção do ex-marido: "A única lembrança ruim daquele dia
foi o meu pensamento, uma prova de mesquinhez desesperada, o desejo sem
reflexão de usar uma criança para trazer Mario de volta para casa e dizer para
ele: vê o que pode acontecer quando você não está aqui?"[3] .
Olga imediatamente repreende o seu desejo, no entanto, o que interessa é defrontar
o/a leitor/a com essa possível atitude desesperada que poderia ocorrer (e
ocorre) com qualquer um.
A questão do tempo investido e das renúncias
aparece também nesta linda passagem: "Queria gritar: não toque
mais em nada; são coisas com as quais você trabalhou enquanto eu estava lá,
ocupando-me de você, fazendo compras, cozinhando, é um tempo que também
me pertence um pouco, deixe tudo aí"[4].
Ressalto mais um excerto no mesmo sentido: "Eu
tinha tirado um tempo que era meu para somá-lo ao seu e fazê-lo mais potente.
(...) Eu tinha cuidado da casa, da comida, dos filhos, eu tinha me
ocupado de todas as chatices da sobrevivência do cotidiano, enquanto
ele escalava teimosamente o declive de nossa origem sem privilégios. E, agora, agora
ele me largava carregando consigo todo aquele tempo, toda aquela
energia, todos aqueles sacrifícios que eu fizera por ele, de uma hora para
outra, para gozar os frutos com outra, uma estranha que não tinha
mexido um dedo para pari-lo, nutri-lo e fazer com que ele tornasse o
que era"[5].
"Eu tinha me ocupado de todas as
chatices da sobrevivência do cotidiano": quer frase melhor do que essa
para explicar a divisão sexual dos trabalhos domésticos e de cuidados? É
incrível como Ferrante sintetiza na frase destacada a raiva acumulada em razão
da disparidade existente dentro do relacionamento (outra passagem excelente
nesse sentido aparece quando ela descreve que seu único trabalho era cuidar das
crianças, do lar e da economia doméstica, ela relata que escrevia
detalhadamente todos os gastos, "como se fosse uma contadora que tinha
que prestar contas ao patrão sobre a empresa"[6] – mais um tapa na cara no
patriarcado!). Olga está brava e chateada pela traição, mas mais do que isso,
ela está amargurada pela promessa não cumprida e anunciada pelos ideais de
relacionamentos monogâmicos e heterossexuais convencionais: "mulher, seja
fiel, apoie seu marido, seja abnegada, valorize primeiro sua família, que assim
você sempre terá uma homem para chamar de seu protetor e companheiro". As
renúncias e abnegações feitas ficam evidentes na parte em que diz "agora
ele me largava carregando consigo todo aquele tempo". É o tempo
investido no outro, de forma desigual e exploratória, que frustra. Mas, poderão
questionar, essa não é a visão apenas de Olga? Será que Mario também não fez
renúncias? Imagino que Mario também tenha feito escolhas para se manter no
relacionamento com Olga, mas o que está sendo ponderado é o desequilíbrio das
funções e atribuições impostas às mulheres para sustentar o relacionamento
- decisivamente mais impostas às mulheres - como o cuidado da casa e dos
filhos, a função de gerenciar a economia doméstica, gerir o sentimento do
casal, ser atraente, dar conta de si própria etc.
Quando Olga fala da "estranha que não
tinha mexido um dedo" para parir o Mario do momento presente, ela fala
com rancor e raiva dessa mulher, anos mais jovem do que ela. Neste ponto,
é importante não confundir esse sentimento de rancor, talvez inevitável - já
que o marido manteve esse relacionamento extraconjugal por anos com uma
adolescente conhecida por Olga -, com o estímulo a rivalidade entre as
mulheres. Existe uma rivalidade e uma competição muito forte entre mulheres,
estimulada desde a mais tenra idade, para a conquista amorosa dos homens. Sem
cair na discussão do que é ou não uma paquera, o que se deve buscar é a
superação da ideia de que "mulheres são lobas querendo pegar os maridos
das amigas", para responsabilizar aquele que tem um compromisso estabelecido.
"Tornara-me uma esposa obsoleta, um
corpo negligenciado, minha doença é só a vida feminina que ficou
fora de uso" (p. 107). Essa passagem revela por si só o
sentimento de uma mulher que se vê como objeto deixado de lado, após perder a
referência do marido.
Todo o livro é marcado por uma narrativa lenta e
desorientada de Olga que vai nos fazendo vivenciar e nos angustiar com o
sentimento de abandono.
Olga também se sentirá pressionada por uma amiga
que pretende arranjar um encontro com um conhecido solteiro. Ela se deprime com
a ideia de que já teria que refazer a vida com outra pessoa para ser
"completa" novamente.
Independente do caminho que Olga seguirá, com ou
sem um novo amor, a resposta que dá a Mario, quando ele pergunta se ela ainda o
ama, é uma resposta precisa, que talvez muitos mereciam ouvir:
"Não te amo mais porque, para se
justificar, você disse que tinha caído no vazio, no vazio de sentido, e não era
verdade". (...)
"Agora eu sei o que é um vazio de
sentido e o que acontece se você consegue voltar à superfície. Você não, você
não sabe. Você no máximo lançou um olhar para baixo, se assustou e tampou a
fala com o corpo de Carla"[7].
De forma crua e honesta, Ferrante traz um livro
necessário para entender o abandono vivenciado por muitas pessoas, sobretudo
mulheres. E, de certa forma, ao escrever de forma tão direta, sem poupar
pensamentos e desejos, vem também redimir aquelas que passaram por situações
semelhantes.
[1] FERRANTE, Elena. Dias de Abandono.
Editora: Biblioteca Azul, 1ª ed., p. 16.
[2] Idem, p. 18.
[3] Idem, p. 31.
[4] Idem, p. 39.
[5] Idem, p. 60.
[6] Idem, p. 88.
Gostei muito desse livro e sua resenha foi maravilhosa!
ResponderExcluirComo toda boa resenha, me deixou intrigadissima para ler o livro. Os trechos selecionados estão carregados de uma densidade ímpar e conseguir enxergar nessa historia uma forma de redenção me parece ser fruto de uma leitura, antes de tudo, comprometida com a emancipação feminina.
ResponderExcluir