A escritora por de trás de "Frankenstein"

Recentemente assisti ao filme cinebiografia "Mary Shelley", da diretora Haifaa Al-Mansour (conhecida por "Sonho de Wadjda" - confesso que ainda não assisti, mas tenho vontade).

O filme conta a história de Mary Wollstonecraft Shelley, filha da feminista e escritora, Mary Wollstonecraft, e do filósofo anarquista, William Godwin. 

Como a maioria das cinebiografias, não espere grandes diferenciais argumentativos ou recursos estéticos. De toda forma, gostei muito do filme porque trata da história de uma escritora muito jovem, em uma época em que as mulheres não conseguiam escrever, tampouco publicar seus textos. 

A atuação de Elle Fanning e a força e coragem da personagem Mary Shelley são destaques no filme. 

Na história da autora Mary, é impossível não notar a importância da sua mãe, uma das vanguardistas na discussão sobre os direitos das mulheres, na identidade e percepção de mundo de Mary Shelley. Para retratar esse elo entre mãe e filha, a diretora realça as cenas simbólicas da filha visitando a mãe no túmulo, o qual é retratado como espaço de criação e força para Mary. 

Colocada como herdeira dos ideais libertários da mãe, Mary terá seus valores questionados e confundidos. Nesse sentido, é triste perceber que a ideia de liberdade nas relações amorosas defendida por ela, em uma época em que mulheres não poderiam se divorciar ou viverem com um homem sem casar, é confundida por Percy, namorado/companheiro de Mary, como a possibilidade dele ter várias amantes sem reclamações ou descontentamentos por parte de Mary. Enquanto Mary, em meio das restrições da liberdade sexual feminina, entendia os ideias de "amor livre", propagado por seus pais, mais como a aceitação de toda forma de amor, Percy somente estava preocupada em garantir suas aventuras amorosas.  

O filme também sugere que o sofrimento de Mary, em razão da desilusão nos relacionamentos pessoais e as pressões sociais por um comportamento "típico feminino", foi transferido na escrita de seu livro de terror, que apesar de relatar a história de um "monstro" está refletindo sobre a solidão e os preconceitos sofridos pela própria Mary Shelley. Nessa linha, parece que Mary está em consonância com  a nova onde de filmes de terror, como o filme "Corra", que para além de serem aterrorizantes também tratam de questões sociais. 

Mary, seguindo o caminho da sua mãe, é representada como uma mulher forte, libertária e que não se deixa ser inferiorizada pelos homens. Outra figura importante no filme é irmã unilateral paterna de Mary. A sororidade e a união entre Mary e a irmã é confirmada, quando mesmo após a irmã desenvolver um relacionamento amoroso com Percy, Mary a consola e não a culpabilizada. Esse laço entre as duas, é reiterado quando a irmã, ao ler o livro de Mary, parece compreender sua dor e a "matéria-prima" utilizada para descrever o sofrimento de "Frankenstein". É um momento especial entre as duas no filme, que revela muita cumplicidade e que nos leva a crer que os verdadeiros "monstros" para elas, pelo menos naquele contexto em que viviam, com exceção do pai, foram os homens.

Mary encontrará grande dificuldade para publicar o seu livro mantendo a sua autoria, é desacreditada por ser jovem, mulher e escrever uma leitura não destinada para o público feminino, em tese. 

Sem dúvida, o filme também nos faz refletir sobre a importância da educação e da igualdade de oportunidades para a criação e divulgação de obras escritas por mulheres. Nessa linha, uma das mensagens do filme poderia ser que as mulheres escrevem e produzem grandes obras quando são estimuladas, tal como Mary foi por seu pai. Tal mensagem se encaixa perfeitamente com os movimentos atuais de incentivos a escrita feminina, como o "leia mulheres". 

É um filme excelente para conhecer a história da escritora que, embora tenha sua obra principal imortalizada, tem sua trajetória e mesmo autoria do livro apagadas.




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