Para quem assistiu "A favorita".

Mais uma premiação do Oscar e mais um vez não temos nenhuma mulher na direção dos filmes indicados para a categoria melhor filme. Isso não quer dizer que as mulheres não estejam produzindo mais, mas claramente significa a manutenção das desigualdades existentes nos altos escalões da indústria cinematográfica. 

Contudo, ao menos, vemos mais filmes falando sobre mulheres sem reduzi-las a imagem de "musas" ou objetos de desejos. 

Nesse sentido, temos a indicação do filme "A Favorita" na categoria de melhor filme. Apesar de não ser um filme com um teor ou uma temática marcadamente feminista, é claramente provocador ao trazer na centralidade de sua trama três mulheres (Anne, Sarah e Abgail), com diálogos fortes e inteligentes, que estão permeadas pelos seus próprios conflitos e não se reduzem a falar sobre homens. Na verdade, os homens são retratados de forma secundária, alguns são, inclusive, bestificados. 

Poderíamos dizer que o filme "A Favorita" é um filme que retrata de forma cínica as frivolidades da realeza e seus jogos de poder. Mas o filme é mais do que isso. Incrivelmente, o diretor Yorgos Lanthimos consegue, sem cair em estereótipos, apresentar de maneira cômica a relação de três mulheres e suas ambições de poder. 

Retratar mulheres no poder, podendo identificá-las como pessoas cruéis e que são capazes de praticar as condutas mais antiéticas por sobrevivência, quebra a visão idealizada de que mulheres ou são santas ou são putas. São poucos os filmes que retratam as mulheres com tanta personalidade e centralizam seus desejos e medos como a tônica da narrativa. Importante destacar que o filme ao retratar mulheres em posição de poder não reproduz aquela imagem distorcida da mulher ambiciosa como "vilã" de novela. Vamos as personagens. 

Anne, a rainha, é uma mulher frustrada e mimada e pouco se importa pelo país. O que a interessa é ser bem vista e bajulada.

Sarah, sua empregada e amante, é quem de fato governa. Ela tem sede por poder. É brilhante a cena em que ela entra na sala com os ministros e demais representantes do parlamento - que estão disputando de forma tosca uma corrida de patos - e consegue silenciar todos de forma rápida e sem rodeios.

Com essa cena dos patos e outras que envolvem o entretenimento da realeza, o diretor consegue acabar com aquela áurea de que pessoas da realeza são pessoas iluminadas e escolhidas para governar. A imagem distorcida, a câmara baixa e as filmagens em câmara lenta apenas com a música, sem ruídos, vão criando uma atmosfera que ridiculariza toda a glamorizarão que se constrói em torno da realeza - que, diga-se de passagem, mais usurpa da pessoas pobres do que constrói efetivamente melhorias para o povo. A mediocridade e o egocentrismo dos personagens ilustra o que há de pior no ser humano e nas/os governantes. 

Bem, mas voltemos as personagens. Abigail é a personagem que vem para destabilizar a relação entre Anne e Sarah. Ela é prima de Sarah e fará de tudo para retornar ao status de "Lady". Desde o início, essa personagem é assediada pelos homens. A escolha do diretor em apresentar uma nobreza que, por de trás da pompa, sexualiza as mulheres como objeto fica evidenciada, por exemplo, na cena em que o sujeito se masturba na frente de Abgail na carruagem e aperta sua bunda quando ela vai descer. Tal cena escancara o machismo impregnado na época - que permanece até hoje, como nos casos de assédios nos transportes públicos. 

O diálogo entre Abgail e o seu futuro marido, em seu quarto de empregada, em que ele entra super maquiado, para assediá-a é irônico e sagaz ao evidenciar a naturalização do tratamento das mulheres como seres à disposição dos homens. Abgail pergunta para ele se ele está lá para corteja-la ou para estuprá-la (algo do tipo) e ele diz que é um cavalheiro, aí ela diz então veio "me estuprar". Para mim, essa fala é muito perspicaz, porque ao mesmo tempo em que o diretor ridiculariza a ideia de que ser "cavalheiro" garante uma moral superior, também afirma o quanto esse rótulo esconde e ofusca violências. No final, a mensagem que fica é que ser cavalheiro não quer dizer nada, muito pelo contrário, muitos dos "ditos" cavalheiros cometem as maiores atrocidades. Outras cenas são hilárias no filme, como a cena em que Abgail é abordada na floresta pelo seu futuro marido, ela é agressiva e tem um comportamento não esperado para uma mulher. Interpretei como mais uma cena em que o filme ridiculariza aquelas ideias de romance e de uma mulher que espera ser salva.

Entendo que o filme também quer trazer uma reflexão quando retrata os homens excessivamente maquiados e as mulheres não. Primeiro, porque demonstra que a maquiagem não está ligada necessariamente a um gênero e que são os costumes e hábitos de uma determinada cultura e de um determinado tempo que vão condicionando os comportamentos. O que demonstra, por sua vez, que esses hábitos são passíveis de mudança. Além disso, também rompe com as caixas fechadas de feminilidade e masculinidade, na medida em que os desejos e expressões de homens e mulheres não estão determinados pelo modo como se vestem ou se apresentam. Tanto é que Abgail e Sarah são muito mais focadas e determinadas do que todos os homens que aparecem. Talvez o filme brinque com esses conceitos de feminino e masculino, "feminizando" os homens e "masculinizando" as mulheres, exatamente, para demonstrar que esses conceitos não são fixos. 

A relação amorosa/sexual entre Anne e Sarah é marcada por uma submissão por parte de Anne, que se rebela ao encontrar em Abgail uma maneira de gerar ciúmes em Sarah. Ao final, vamos ver que Anne encontra em Abgail alguém para fazer de capacho e sair do controle de Sarah, ainda que continue em sofrimento. 

Entendo que a força do filme está em apresentar três personagens femininas complexificadas, sem intermediários masculinos. São três mulheres que não estão acima das regras sociais machistas da época, mas que as desvirtua, ridiculizando as bizarrices da nobreza. 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ponciá Vicêncio: entre a memória e a dor.

Sangue

Sobre o filme “A história de um casamento”