Adoráveis mulheres - O universo de potência das irmãs March

“Importa-me mais ser amada. Quero ser amada.”

A versão adaptada do livro “Adoráveis Mulheres” (Little Woman, escrito por Loisa May Alcott) para o cinema, realizada pela diretora Greta Gerwig, foi a primeira que assisti. Uma palavra que utilizaria para sintetizar a minha experiência com o filme é encantamento. Greta Gerwig consegue criar de forma grandiosa, com uma beleza sublime estampada nos cenários, vestimentas e paisagens, o universo das irmãs March.

As quatro irmãs, Jo March (Saoirse Ronan), Amy March (Florence Pugh), Meg March (Emma Watson), Beth March (Eliza Scanlen), com personalidades e expectativas tão distintas, constroem espaços de criação e arte, mesmo em um momento de escassez, durante a Guerra Civil Americana.
Desde o início, os olhos se voltam para Jo March. Nos primeiros instantes do filme, Gerwig, nos coloca no lugar de Jo March, que está criando coragem para apresentar um de seus escritos para um jornal. São instantes em que sentimos que temos que criar coragem junto com aquela personagem para adentrar um espaço que lhe é hostil. Ela abre a porta e vemos somente homens sentados, olhando-a de forma incômoda. Ela está insegura com seus escritos e não consegue dizer que é quem os escreve, sequer reivindica sua autoria. Essa sequência nos coloca no grande desafio que será vivido por Jo.



E é essa a aventura que o filme propõe: a construção dessa heroína, Jo March, cheia de dúvidas e de inseguranças, mas que busca produzir e encontrar sua própria escrita. É incrível como a filmagem vibrante e rápida, logo após ela conseguir vender seu primeiro artigo, transmite uma felicidade indescritível, que só se repetirá ao final quando Jo consegue produzir seu próprio livro.
Se em outras versões Jo March não ganha essa centralidade, na versão de Gerwig é ela que nos conduz e parece atualizar a história para os dias atuais. O romance frustrado entre Jo e Laurie é anunciado na segunda sequência do filme, de modo que, por mais que possamos sofrer com essa desilusão, não é isso que nos prende no filme. O que nos mantem atentas/os é a evolução de Jo e a sua busca por concretizar o sonho da escrita.

É na relação com as irmãs que Jo encontrará a resposta para seus anseios literários. Quando Jo consegue escrever sobre aquele universo cheio de potência que ela e suas irmãs criaram, encontra sua própria voz. Por meio de sua escrita, ela irá revalorizar o espaço doméstico, na maior parte das vezes esquecido pelos escritores homens, ou deliberadamente colocado como um espaço onde não se encontram grandes temas. Jo, tal como Loisa e Gerwig, encontra nas histórias das quatro irmãs matéria suficiente para construir uma verdadeira aventura. Esse achado passa, sem dúvida, por um reconhecimento das mulheres na história e na arte.

As irmãs March conseguiram construir um universo em que podiam se vestir de homens, criar textos, peças de teatro, pintar, produzir para além do que lhe esperava no futuro. Mais ainda, cada uma, embora com expectativas diferentes sobre o futuro, puderam usufruir de uma infância em que mais de uma possibilidade lhe era oferecida.

Mas a relação da infância daquelas irmãs e os impasses que a vida traz para se tornar uma mulher adulta, com as consequências limitadoras de um casamento, vem à tona.

A crítica ao casamento como forma de limitação e redução da vida das mulheres é escancarada. Em uma época em que o casamento era o destino certo para uma mulher esperar, Jo busca desafiar esse padrão e entra, inclusive, em conflito com as irmãs por tal razão. Nesse sentido, embora Jo se esforce para aceitar as escolhas mais convencionais de Meg, não consegue esconder, pelo menos em um primeiro momento, seu desgosto por ela não ansiar mais. Por sua vez, a tensão de interesses com Amy, que busca entrar no jogo social e aceitar o casamento como meio de ascensão, criar um buraco entre as irmãs.

Apesar do filme não reduzir as escolhas de Meg e Amy, respeitando-as e dando poder de ingerência sobre as escolhas que fizeram, Jo sabe que para buscar garantir sua escrita terá que renunciar ao destino esperado do casamento. É o mesmo o que acontece com a personagem Sybylla, no filme “My brillant carrer”, da diretora Gillian Armstrong (que fez a adaptação de “Adoravéis Mulheres” de 1994). Sybylla é enfática ao dizer que não quer casar porque quer ser escritora.

Muito embora, Jo e Sybylla tenham certeza de seus interesses, trata-se de uma escolha difícil. Com ela, parece vir a solidão. Por isso, para mim uma das cenas que mais gostei, é o diálogo que entre Jo e sua mãe Mary March (Laura Dern) no sótão. Jo, triste com a morte de Beth e notando que a relação com as irmãs nunca será a mesma, se sente sozinha naquele caminho que escolheu. Quando questionada sobre amar ou não Laurie, confessa para mãe: “Importa-me mais ser amada. Quero ser amada.” Tal fala, além de sintetizar uma angústia feminina muito presente, releva que Jo dentro si, tem a difícil missão entre se manter coerente aos seus ideais e enfrentar um caminho solitário. Ela enfatiza que está cansada de como as mulheres são vistas: “Elas têm mentes e almas, não apenas corações. Estou tão cansada disso, mas estou tão solitária!”. E essa é para mim a grande potência do filme e da história em si – o que a faz ser tão revisitada – é o desafio vivenciado pelas mulheres para conseguir sair daquele lugar predeterminado, daquele espaço que lhe é oferecido, daquela história única que lhe é estabelecida, conseguindo suportar tanta solidão e dor que esse desafio poderá lhe trazer. Em palavras mais simples, nadar contra corrente dói.

Também me recordei do filme “Cinco graças” (“Mustang”), dirigido por Deniz Gamze Ergüven. As situações são muito mais adversas para as irmãs do filme de Deniz que vivenciam casamentos forçados com homens muitos mais velhos, mas é salutar o paralelo entre a união das irmãs nos dois filmes e como a vida adulta pode acabar com as potencialidades das mulheres reduzindo-as em um futuro onde se coloca o casamento com possibilidade única e inexorável para uma mulher completa e de moral adequada. O que parece levar a duas conclusões: como não há nenhuma naturalidade no destino colocado às mulheres; como se faz necessário a união e o fortalecimento entre meninas e mulheres para se garantir que as possibilidades que temos quando pequenas não se percam.

Ainda sobre a ruptura do destino único do casamento, é preciso notar a proposta de Gerwig deixar mais visível a relação autobiográfica entre Jo March e a escritora Loisa Alcott. As dificuldades para manter sua escrita e produzir estão presente no mundo de Jo, como estavam no mundo vivido por Alcott, o que também pode ser estendido, guardado o devido momento histórico, à própria diretora. A produção de arte por mulheres sempre foi difícil. Nesse ponto, convém trazer para discussão o que Virginia Woolf chamava de “o anjo-da-casa”:

“O problema do qual Woolf fala às mulheres-profissionais não é, portanto, de ordem material, mas de índole psíquica: o assédio e o perpétuo retorno do sinistro anjo-da-casa. Perturba a escritora essa imagem da esposa-mãe-idealizada que aparece em todos os âmbitos da vida social, assim como dentro da casa e de sua cabeça, enquanto ela escreve”. (MERUANE, Lina. Contra os filhos, Ed. Todavia, p. 51).

Na verdade, o que Jo e tantas escritoras, diretoras, artistas, trabalhadora enfrentam é quase como um inimigo interno, que a puxa para ocupar um único lugar. Mas esse inimigo interno não está apenas na cabeça das mulheres. Ele é criado e realimentado pelas próprias relações sociais desiguais, o que fica muito bem ilustrado ao final, quando Jo é forçada a dar um casamento para sua personagem – o que no filme é brilhantemente ironizado e não incluído. Essa desigualdade também é perceptível quando Jo negocia, de forma muito inteligente, para manter seus direitos autorais e aumentar sua porcentagem de lucros nas vendas.

Certamente, a narrativa de Jo nos coloca para refletir o casamento enquanto relação econômica e imposição às mulheres.  Amy tem uma fala em que explicita que se o casamento é uma questão econômica para as mulheres, saberá fazer uso disso. Meg, por sua vez, casa-se por amor e sofre das limitações materiais desse casamento. É essa reflexão sobre o casamento enquanto determinação social e econômica que é proposta pelo filme. O casamento para as mulheres sempre marcará sua vida para muito além das questões amorosas.

Por quantos anos assistimos a filmes em que a única busca da personagem principal era se casar? E por que é mais penoso para as mulheres fazer essa escolha entre ter uma vida profissional ativa e produtiva e se casar? Por que para mulheres o casamento simboliza tantas renúncias? O desejo de ser amada/o se coloca no mesmo patamar na vida de mulheres e homens?

Mesmo com todas essas reflexões, com toda a beleza das imagens e do figurino, confesso que a aura de perfeição me incomodou. Tudo parecia muito perfeito, muito limpo. Aquela infância, embora reconheça toda a potencialidade que relatei acima, parece tão idealizada e inacessível. Aquela mãe, tão abnegada e calma com quatro filhas, parece tão irreal. O pai tão generoso e contente com quatro meninas parece tão pouco próximo do que se vive. A ideia de um ambiente doméstico favorável às meninas e às mulheres parece tão distante. Mas é aí que entra a frase da escritora Loisa May Alcott que inaugura o filme: “Tive muitos problemas, então escrevo histórias alegres”.

Loisa criou, ainda que pautada nas sua próprias vivências, uma história de encantamento do universo daquelas irmãs e Gerwig adaptou para o cinema, para nos proporcionar, talvez, a primeira aventura épica, de grandes dimensões cinematográficas, protagonizada por uma mulher, que se aprofunda nas contradições vividas por uma jovem mulher para se tornar aquilo que sonha ser em uma sociedade estruturalmente mais fechada para as mulheres. Confesso que fiquei triste comigo mesma por não adorar o filme logo no primeiro momento e não sair com aquele êxtase no cinema. Mas, depois, pensei que se fosse um pouco mais jovem, iria me deslumbrar com a Jo. Gerwig cria uma aventura com encantamento digno de representar parte dos ideais feministas e entusiasmar gerações.  

Digo parte dos ideais feministas, porque pelas próprias limitações da história e até porque não se pretende, é criada uma atmosfera de certa harmonia e polidez no filme, apesar do sofrimento da guerra e das renúncias da família Mach.
Sinto uma limitação dentro de um feminismo branco liberal, no entanto, tal como na obra literária, o filme não pretende aprofundar nas questões de classe ou raça.

A elaboração do livro de Jo coroa “Adoráveis mulheres” com um desfecho mágico. Em comparação ao longa-metragem “Mary Shelley” (dirigido pela Haifaa al-Mansour), que relata a história de uma escritora que, ao contrário de Jo, sentiu na pele as dificuldades do casamento e o apagamento de sua autoria no aclamado livro “Frankenstein”, a cena em que enfim Mary visualiza o seu nome estampado no livro é muita mais sóbria, apesar de também expressar contentamento. Penso que as duas obras se conversam bastante neste ponto: concretização de uma obra. Entretanto, Gerwig faz uma opção por tornar tudo mais encantador e vibrante, com a intenção de experimentarmos um pouco daquela conquista de Jo e do universo das irmãs March, proporcionando a meninas e mulheres um conto potente de superação feminina. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ponciá Vicêncio: entre a memória e a dor.

Sangue

Sobre o filme “A história de um casamento”