“Jogo de cena”

 

A representação da dor pelas mulheres



  “Jogo de Cena”, documentário brasileiro de 2007, dirigido por Eduardo Coutinho, faz parte do rol daquelas obras que mudam nossas percepções.

O filme é excelente por diversas razões, mas, vou destacar o aspecto das narrativas femininas.

A simplicidade inicial do longa-metragem, estruturado a partir dos relatos de mulheres que procuraram pelo diretor após um anúncio colocado no jornal, ganha aos poucos uma profundidade que nos envolve em todos os sentidos. Diretor e equipe selecionam algumas histórias que serão contadas pelas próprias mulheres que a vivenciaram, mas também por atrizes. E, assim, drama real e ficcional se embaraçam.

A seleção das histórias das mulheres que se voluntariaram não poderia revelar outro fator senão a representação que as mulheres fazem de suas próprias vidas, que, na maioria das vezes, giram em torno de dois temas: maternidade e casamento. Dentre esses dois temas, a devoção aos filhos aparece como sintoma de uma abnegação latente nas mulheres.

As histórias interpretadas pelas próprias mulheres e pelas atrizes se confundem, o que nos faz questionar: a ficção consegue mimetizar a vida das mulheres? As mulheres conseguem dar voz e interpretar seus sofrimentos?

Apesar de aparentemente inusitadas, as histórias refletem muito das dores vivenciadas pelas mulheres em geral. Ademais, dar oportunidade para que as mulheres dramatizem a suas próprias angústias, sem serem consideradas histéricas ou loucas[1], é permitir que protagonizem suas versões de si mesmas, o que é tão pouco concedido às mulheres. As histórias escolhidas desafiam os dramas ficcionais em razão da forma como são contadas. É a representação que as mulheres atribuem as suas histórias que as tornam únicas. Ao mesmo tempo, possuem um grau de sensibilidade não encontrado em uma tragédia inventada. Tanto é verdade que as atrizes têm dificuldade de assumir as personagens e fraquejam no controle de suas emoções, embora sejam treinadas para dramatizar.

A maternidade, como dito acima, está presente em quase todas as narrativas, marcando momentos de profunda tristeza ou potência. Os laços entre mãe e filhos/as são representados como detentores de força celestial. Mesmo após a morte, somente o encontro com os/as filhos/as em sonhos permitem que as mães se acalentem. Embora as histórias transbordem essa força da maternidade, os conflitos existenciais dessas mulheres, inclusive suas desilusões, também giram em torno da exaltada maternidade. Algumas, por serem mães em momentos não desejados, perdem seus sonhos. E, nesse ponto, o desconhecimento sobre as formas de engravidar é assustador, embora revelador. Não poderia ser diferente, afinal, a maior parte da sociedade insiste em não discutir abertamente e com clareza métodos contraceptivos e educação sexual. A título de exemplo, ao interpretar a história de uma jovem que ficou grávida porque desconhecia a necessidade de aguardar o prazo de um mês para o efeito contraceptivo da injeção que tomou, a atriz, interpretando a versão narrada pela mulher, amplifica a estupidez vivenciada. Comparar os dois choques, da atriz e da mulher, diante de um ato de ignorância que modificou seus caminhos para sempre é um artifício para demonstrar como é possível que pessoas contem sua história de forma ainda mais impactante. No mesmo sentido, também é relatada a história de uma mulher que jurava que para ficar grávida teria que transar mais de uma vez. Tal desconhecimento gerou uma filha que nunca conheceu o pai e que é cuidada por terceiros, revelando, mais uma vez, como a maternidade marca o destino de mulher e filha.

Mesmo para as mães que querem ser mães, essa jornada é sempre inacabada. Em uma das histórias, o laço entre mãe e filha que parece definitivo é rompido por uma briga raivosa. Agora, a mãe não consegue não se emocionar ao assistir “Procurando o Nemo”.  Pode parecer pequeno, mas a mulher contando a história desse desenho animado e relacionando com sua filha, invoca o imaginário de um laço inquebrável entre mãe e filha, nos retornando a nossas próprias mães. Nesse ponto, fiquei pensando na ligação com a minha mãe porque ser filha é também sentir as dores de sua mãe. É um pouco como a escritora Sheila Heti, no livro “Maternidade”, descreve: “Uma criança pensa que ela é motivo até da existência das estrelas dos céus, então é claro que o choro da minha mãe era culpa minha. Por que eu havia nascido para fazê-la sofrer?”

Não posso afirmar categoricamente que se fossem 23 histórias masculinas elas não envolveriam paternidade, mas, certamente, não é à toa que quase a unanimidade das histórias selecionadas envolvam a relação mãe e filho/a. Não acredito que as mulheres naturalmente possuem uma relação mais forte com os/as filhos/as, no entanto, é inegável que há uma valorização social e cultural maior atribuída à relação entre mãe e filho/a[2]. De toda forma, resta identificado que, seja a maternidade desejada ou não, ela inevitavelmente marcará a vida das mulheres.

As escolhas por um cenário único e enquadramento próximos funcionam para confundirmos o que é encenação e o que não é. Uma pergunta é constante no filme: o quanto de nossas memórias não são nossos dramas construídos e reconstruídos por nós? O diretor busca nos confundir pouco a pouco, ao ponto de não mais distinguirmos quem é atriz e quem é personagem real.

Em uma reportagem concedida à TV Sesc[3], Coutinho relata que ao realizar “Jogo de Cena” buscava demonstrar “que todas histórias contadas geram um efeito ficcional extraordinário”. Assim como em seus outros filmes, Coutinho extrai de pessoas comuns – no caso, mulheres –fragmentos de suas vidas que são contados de forma genuína e, por estarem tão próximos da realidade, nos fascinam a partir da intimidade de seus sofrimentos. O mais interessante é perceber que são histórias de mulheres comuns, que poderíamos encontrar no ponto de ônibus, no supermercado, no trabalho etc.

A valorização dessas histórias funciona como expiação de todas as culpas e faltas que as mulheres tanto carregam. A cena final, nesse caminho, é a concretização dessa penitência, com uma música de ninar singela cantada por aquela mãe, que tanto sofre pelo descaso da filha, arremata a obra com a sensação de que os dramas das mulheres merecem ser representados e extravasados.



[1] Interessante notar que os sofrimentos femininos, por muito tempo (e por alguns até hoje), foram desconsiderados e tratados como desvios de uma natureza biológica imperfeita das mulheres: https://azmina.com.br/especiais/quando-a-loucura-e-filha-do-machismo/ , cito: “A psicoterapeuta americana e autora do livro “Women and madness” (Mulheres e Loucura), Phyllis Chesler, acrescenta que a própria estrutura patriarcal faz com que as mulheres desenvolvam distúrbios mentais”.

[2] Sobre o tema, recomendo o livro “Maternidade”, escritora Sheila Heti, do qual destaco a passagem a seguir: “Sendo mulher, você não pode simplesmente dizer que não quer filhos. Você precisa ter algum grande plano ou ideia do que você vai fazer em vez disso. E é bom que seja algo incrível. E é bom que você consiga dizer de forma convincente qual vai ser o enredo da sua vida – antes mesmo que ele se desenrole”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ponciá Vicêncio: entre a memória e a dor.

Sangue

Sobre o filme “A história de um casamento”