“Jogo de cena”
A representação da dor pelas mulheres
O filme é excelente por diversas
razões, mas, vou destacar o aspecto das narrativas femininas.
A simplicidade inicial do
longa-metragem, estruturado a partir dos relatos de mulheres que procuraram
pelo diretor após um anúncio colocado no jornal, ganha aos poucos uma
profundidade que nos envolve em todos os sentidos. Diretor e equipe selecionam
algumas histórias que serão contadas pelas próprias mulheres que a vivenciaram,
mas também por atrizes. E, assim, drama real e ficcional se embaraçam.
A seleção das histórias das
mulheres que se voluntariaram não poderia revelar outro fator senão a
representação que as mulheres fazem de suas próprias vidas, que, na maioria das
vezes, giram em torno de dois temas: maternidade e casamento. Dentre esses dois
temas, a devoção aos filhos aparece como sintoma de uma abnegação latente nas
mulheres.
As histórias interpretadas pelas
próprias mulheres e pelas atrizes se confundem, o que nos faz questionar: a ficção
consegue mimetizar a vida das mulheres? As mulheres conseguem dar voz e
interpretar seus sofrimentos?
Apesar de aparentemente inusitadas,
as histórias refletem muito das dores vivenciadas pelas mulheres em geral. Ademais,
dar oportunidade para que as mulheres dramatizem a suas próprias angústias, sem
serem consideradas histéricas ou loucas[1], é
permitir que protagonizem suas versões de si mesmas, o que é tão pouco
concedido às mulheres. As histórias escolhidas desafiam os dramas ficcionais em
razão da forma como são contadas. É a representação que as mulheres atribuem as
suas histórias que as tornam únicas. Ao mesmo tempo, possuem um grau de sensibilidade
não encontrado em uma tragédia inventada. Tanto é verdade que as atrizes têm
dificuldade de assumir as personagens e fraquejam no controle de suas emoções, embora
sejam treinadas para dramatizar.
A maternidade, como dito acima,
está presente em quase todas as narrativas, marcando momentos de profunda
tristeza ou potência. Os laços entre mãe e filhos/as são representados como
detentores de força celestial. Mesmo após a morte, somente o encontro com os/as
filhos/as em sonhos permitem que as mães se acalentem. Embora as histórias
transbordem essa força da maternidade, os conflitos existenciais dessas
mulheres, inclusive suas desilusões, também giram em torno da exaltada maternidade.
Algumas, por serem mães em momentos não desejados, perdem seus sonhos. E, nesse
ponto, o desconhecimento sobre as formas de engravidar é assustador, embora revelador.
Não poderia ser diferente, afinal, a maior parte da sociedade insiste em não
discutir abertamente e com clareza métodos contraceptivos e educação sexual. A
título de exemplo, ao interpretar a história de uma jovem que ficou grávida
porque desconhecia a necessidade de aguardar o prazo de um mês para o efeito
contraceptivo da injeção que tomou, a atriz, interpretando a versão narrada
pela mulher, amplifica a estupidez vivenciada. Comparar os dois choques, da
atriz e da mulher, diante de um ato de ignorância que modificou seus caminhos
para sempre é um artifício para demonstrar como é possível que pessoas contem
sua história de forma ainda mais impactante. No mesmo sentido, também é relatada
a história de uma mulher que jurava que para ficar grávida teria que transar
mais de uma vez. Tal desconhecimento gerou uma filha que nunca conheceu o pai e
que é cuidada por terceiros, revelando, mais uma vez, como a maternidade marca
o destino de mulher e filha.
Mesmo para as mães que querem ser
mães, essa jornada é sempre inacabada. Em uma das histórias, o laço entre mãe e
filha que parece definitivo é rompido por uma briga raivosa. Agora, a mãe não
consegue não se emocionar ao assistir “Procurando o Nemo”. Pode parecer pequeno, mas a mulher contando a
história desse desenho animado e relacionando com sua filha, invoca o
imaginário de um laço inquebrável entre mãe e filha, nos retornando a nossas
próprias mães. Nesse ponto, fiquei pensando na ligação com a minha mãe porque
ser filha é também sentir as dores de sua mãe. É um pouco como a escritora
Sheila Heti, no livro “Maternidade”, descreve: “Uma criança pensa que ela é
motivo até da existência das estrelas dos céus, então é claro que o choro da
minha mãe era culpa minha. Por que eu havia nascido para fazê-la sofrer?”
Não posso afirmar categoricamente
que se fossem 23 histórias masculinas elas não envolveriam paternidade, mas,
certamente, não é à toa que quase a unanimidade das histórias selecionadas
envolvam a relação mãe e filho/a. Não acredito que as mulheres naturalmente
possuem uma relação mais forte com os/as filhos/as, no entanto, é inegável que
há uma valorização social e cultural maior atribuída à relação entre mãe e
filho/a[2]. De toda
forma, resta identificado que, seja a maternidade desejada ou não, ela
inevitavelmente marcará a vida das mulheres.
As escolhas por um cenário único
e enquadramento próximos funcionam para confundirmos o que é encenação e o que não
é. Uma pergunta é constante no filme: o quanto de nossas memórias não são
nossos dramas construídos e reconstruídos por nós? O diretor busca nos confundir
pouco a pouco, ao ponto de não mais distinguirmos quem é atriz e quem é
personagem real.
Em uma reportagem concedida à TV
Sesc[3],
Coutinho relata que ao realizar “Jogo de Cena” buscava demonstrar “que todas
histórias contadas geram um efeito ficcional extraordinário”. Assim como em
seus outros filmes, Coutinho extrai de pessoas comuns – no caso, mulheres
–fragmentos de suas vidas que são contados de forma genuína e, por estarem tão
próximos da realidade, nos fascinam a partir da intimidade de seus sofrimentos.
O mais interessante é perceber que são histórias de mulheres comuns, que
poderíamos encontrar no ponto de ônibus, no supermercado, no trabalho etc.
A valorização dessas histórias
funciona como expiação de todas as culpas e faltas que as mulheres tanto
carregam. A cena final, nesse caminho, é a concretização dessa penitência, com
uma música de ninar singela cantada por aquela mãe, que tanto sofre pelo
descaso da filha, arremata a obra com a sensação de que os dramas das mulheres
merecem ser representados e extravasados.
[1]
Interessante notar que os sofrimentos femininos, por muito tempo (e por alguns
até hoje), foram desconsiderados e tratados como desvios de uma natureza
biológica imperfeita das mulheres: https://azmina.com.br/especiais/quando-a-loucura-e-filha-do-machismo/
, cito: “A psicoterapeuta americana e autora do livro “Women and madness”
(Mulheres e Loucura), Phyllis Chesler, acrescenta que a própria estrutura
patriarcal faz com que as mulheres desenvolvam distúrbios mentais”.
[2] Sobre o
tema, recomendo o livro “Maternidade”, escritora Sheila
Heti, do qual destaco a passagem a seguir: “Sendo mulher, você não pode
simplesmente dizer que não quer filhos. Você precisa ter algum grande plano ou
ideia do que você vai fazer em vez disso. E é bom que seja algo incrível. E é
bom que você consiga dizer de forma convincente qual vai ser o enredo da sua
vida – antes mesmo que ele se desenrole”.
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