O Babadook
O que as mulheres temem?
É difícil escrever sobre o longa
metragem “O Babadook” (2014), escrito e dirigido por Jennifer Kent, sem
primeiro, tentar escapar dos preconceitos atribuídos a um filme de terror. Isso
porque a singularidade e beleza desse filme estão justamente ligadas ao fato de
se inserir no gênero terror, mas não se limitar a este e tampouco aos lugares
comuns de tal gênero, com destaque para os estereótipos machistas que na
maioria das vezes acompanham filmes de terror, como será melhor descrito a
seguir.
O filme está centrado em um
trauma vivenciado pela personagem principal, Amélia (interpretada por Essie
Davis), em seus medos e de como ela precisa lidar com desejos que sente – muito
deles inadmissíveis pela sociedade de serem pensados por uma mãe.
A atmosfera fria e seca da casa
onde acontecem os eventos reflete as angústias dessa mulher. Importante
destacar que é um terror que se fecha dentro do ambiente doméstico – espaço em
que as mulheres vivenciam a maior parte das violências, mas também as
reproduzem – não porque é uma casa assombrada, mas porque está amarrado
diretamente com a vivência das personagens, o que deixa o filme ainda mais
verossímil e assustador.
A escolha por elaborar as angústias
e os medos de Amélia por meio de um terror psicológico é transgressora porque
foge do drama e de toda a construção de um sentimentalismo piegas ao redor do
problema, para dar lugar à crueza do sentimento por meio do gênero terror, que,
a partir da sordidez, consegue de forma única elaborar o peso que uma mulher
pode sentir com a perda do marido e a assunção de uma maternidade solo. Destacando
que cada mulher, de acordo com a classe, identidade de gênero, raça, etnia e
orientação sexual pode vivenciar de um modo as situações existenciais narradas e,
por consequência, o filme conversará com cada uma de um modo, ainda que trate
de temas comuns a todas.
Esse diálogo entre o drama e o
terror revela ter ainda mais sentido quando pensamos que a violência, a solidão
e o desalento sofrido, sobretudo pelas mulheres, também se materializa como uma
forma de pânico. Nessa perspectiva, em uma entrevista sobre “O Babadook” Jennifer
Kent, ao ser questionada sobre a presença de mulheres diretoras no gênero
terror, afirma que “As mulheres conhecem o medo. Nós vivemos com ele. Nãoquero retratar as mulheres como vítimas, mas há medo em ser mulher. É diferentedo medo que os homens sentem”. Há
vários medos conscientes e não conscientes em Babadook, o medo de lidar com
morte do marido, medo das consequências de um filho problemático, medo de ficar
sozinha, medo do desejo de rejeição ao filho. E, como mencionado pela diretora,
ser mulher em si já carrega uma série de medos, relacionados as discriminações
e violências sofridas pelas mulheres nos lares[2] e nos espaços públicos[3].
No filme, é a morte do marido que
obriga Amélia a ter que lidar sozinha com a maternidade, mas seu cansaço e
esgotamento mental, que a levam à loucura, também se estendem para outras mães
que não contam com o auxílio paterno e de familiares. A maternidade não aparece
como expectativa de salvação da humanidade ou de gestação de um demônio, como
geralmente costumam simplificar os filmes de terror. Ela está no cerne do
crescimento da tensão e do pavor. E tal escolha somente foi possível porque Kent
apreende o potencial aterrorizante das agruras da maternidade e somente
consegue ter essa percepção porque captura a perspectiva das mulheres que a vivenciam.
Não é sem razão que a primeira
palavra do filme seja “mãe”, chamado realizado pelo filho Samuel em voz off, enquanto estamos imersos na cena inaugural
do sonho de Amélia. A importância dessa figura materna se confirmará no
decorrer da narrativa, mas ainda não sabemos a potência assustadora desse
chamado.
Amélia é uma mulher solitária e
julgada a todo instante. Ela é julgada pela irmã que não entende as razões
pelas quais ela ainda não superou a perda do marido e porque não dá um jeito no
filho. Ela é julgada no trabalho, pelo colega que pensa que sabe quais são suas
necessidades, ao considerar que ela estaria aguardando o seu flerte. Ela é
julgada pelas amigas da irmã na festinha de aniversário da sobrinha, que ficam
com dó por ela não ter marido. Destaco essa cena porque mostra o crescente desconforto
de Amélia em relação a essas amigas, que, apesar de se considerarem aptas para
compreender a dor de Amélia, acabam mencionando com uma grande dificuldade de
suas vidas a falta de praticar exercícios, enquanto Amélia sofre pela solidão e
pelo filho problemático. Toda aquela conversa, deixa Amélia ainda mais isolada.
Na verdade, essas amigas se colocam como agraciadas por terem marido e a
atitude fatigada de Amélia em face delas pode ser interpretada como uma crítica
aos padrões de vida assumidos por algumas mulheres e à premissa de que uma
mulher necessariamente precisa da companhia de um marido.
Esses julgamentos vão se
acumulando. Amélia busca por espaços de respiro. Mente no trabalho para ter uma
tarde só para ela, mas seu filho apronta mais uma vez.
Samuel é, à primeira vista, esquisito,
assustador e irritante. Ele é rejeitado na escola, pelos amigos e, aos poucos,
pela mãe. É ele o responsável pela criação da atmosfera de terror, tanto
imaginário, quanto psicológico. A sensação de cansaço e desgosto em relação ao
filho transborda das expressões de Amélia e não demora muito para estarmos
desejando o sumiço do filho.
Uma cena que merece destaque -
não só por nos contagiar com essa raiva contra o filho, mas para desmistificar
a máxima de “ser mãe é padecer no paraíso” – é de Amélia tentando se masturbar.
Sem dúvida, uma das cenas mais autênticas, porque é uma ruptura com o olhar
masculino que hegemoniza os filmes de terror, por meio do qual são sempre
colocadas cenas de sexo com jovens mulheres hipersensualizadas para serem
assassinadas. Kent contraria radicalmente esse formato e enaltece o desejo e
prazer feminino, sobrepondo-os, inclusive, à maternidade, já que ela é
interrompida de forma irritante pelo filho. E, novamente, vale lembrar que quem
possui uma visão que relaciona a maternidade com uma glorificação angelical irá
julgar Amélia por seu suposto egoísmo em não se preocupar primeiro com filho.
Desde o início, parece que Samuel está desafiando os limites de paciência da
sua mãe.
A construção do personagem do
filho como um tormento permite uma reflexão sobre o esgotamento das mães emrelação aos filhos[4].
Penso que é mais uma escolha para retratar dilemas que atingem as mulheres de
uma maneira mais crua e mais próxima do sentimento de descontentamento que uma
mãe pode sentir, mas se vê obrigada a retrair.
Qual mulher teria coragem de
assumir para si que preferiria a morte do filho à morte do marido? Seria
essa preferência suficiente para defini-la como louca e sádica? São perguntas
que ficam no subtexto do filme, mas que pelas escolhas da diretora é possível
perceber que Amélia não é alvo de seus julgamentos. Pelo contrário, o filme
segue para uma compreensão de Amélia sobre si mesma e sobre seus medos sem
julgamentos. A não repressão dos desejos e angústias de Amélia são essenciais
para romper com estereótipos atribuídos às mulheres, que em outras épocas
levaram a internações compulsórias e até hoje patologizam muitas de nós.
Nesse sentido, percebo Babadook
como praticamente um extravasamento de vários sentimentos não permitidos, mas
que atingem as mulheres, materializado na personagem Amélia. A tensão é
construída pela crescente percepção de Amélia sobre seus próprios medos. Ela
não é retratada como vítima, mas também não é colocada com uma megera
calculista. Do mesmo modo, o uso da violência no filme não atende ao prazer de
subjugar e retalhar mulheres, mas de exprimir as dores vivenciadas.
Mãe e filho são “amaldiçoados”
com a incompreensão das pessoas que estão ao seu redor – com exceção da vizinha
– e, ao fim, só tem a si próprios. O que na verdade revela uma falta de
sensibilidade das pessoas com os transtornos mentais e a tristeza que
vivenciavam. Amélia defende seu filho na escola, dizendo que ele precisava de
compreensão. Ambos precisavam dessa compreensão.
Apesar da maternidade ser retratada
inicialmente como um fardo e sem glamourização, é o filho Samuel o único que
compreende e pode ajudar sua mãe. Mesmo assim, não considero que a obra retorne
para uma santificação ou naturalização da relação mãe e filho, pelo contrário,
é perceptível que mãe e filho precisam reconstruir suas relações, compreendendo
suas limitações e medos.
Kent cria um filme de terror que
não precisa de um ser totalmente corporificado para nos sentirmos amedrontadas/os.
Porque se defrontar com Babadook é se deparar com seus próprios medos e
escolhas. Na mesma linha do aclamado “Corra!” (2017), escrito e dirigido por
Jordan Peele – que tão brilhantemente se
utiliza do horror para escancarar o racismo - “O Babadook” consegue realizar
uma crítica social à carga mental enfrentada pelas mães e à cultura de negação
dos problemas psíquicos, nos mantendo conectados com a história pela tensão das
emoções de Amélia[1].
Com o uso do terror sem a fetichização da violência nos corpos femininos, Kent
consegue realizar obra verdadeiramente assustadora, nos obrigando a viver com
os nossos monstros, criados por nós ou não.
[1] Ao mencionar o filme “Corra!”, questiono sobre a falta de pessoas negras em “O Babadook”. Pesquisando brevemente sobre racismo na Austrália, encontrei o artigo a seguir que retrata as condições de como é ser negro na Austrália e a política de embranquecimento no país: https://www.almapreta.com/editorias/o-quilombo/como-e-ser-negro-e-brasileiro-na-australia. Apesar da proposta da diretora não estar direcionada para retratar as relações raciais é importante trazer à baila tal reflexão para compreender as limitações da narrativa.
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