Sobre o livro Maresi


 Pense em crescer em uma ilha administrada por mulheres que são solidárias umas com as outras e criam um ambiente livre e protegido para você mulher crescer sem medo. Um sonho não é mesmo? É essa para mim a maior sensação que deixa o livro Maresi, da escritora Maria Turtschaninoff.

Na obra, acompanhamos Maresi, a noviça que dá nome ao livro e está em fase de descobrir qual será o seu destino na ordem da Abadia Vermelha, sediada na Ilha de Menos. Não sabemos ao certo como foi construída a Abadia, o que fica ao encargo do primeiro livro da série, Naondel. Pelas escrituras, sabemos que as sete irmãs percursoras da Abadia buscaram construir um lugar seguro, abençoado pela força feminina e cheio de conhecimento para acolher mulheres de todos os cantos do mundo criado pela autora.

Logo no início, Maresi acolhe Jai, uma noviça, ainda mais iniciante na Abadia, que tem um histórico de grave violência doméstica perpetrada por seu pai. Todas as mulheres da ilha estão fugindo de violências e/ou buscando conhecimento. Enquanto Maresi apresenta aquele lugar idílico para Jai, nós, leitoras, também vamos conhecendo a organização impecável da Abadia, onde cada uma cumpre uma função essencial e fundamental para preservação e continuidade da vida. Em alguns momentos, lembrei do livro “Utopia” de Thomas More, porque, ainda que Turtschaninoff não centre a narrativa em uma alternativa à sociedade que vivemos, ela constrói um local em que mulheres e natureza vivem em harmonia, longe das regras capitalistas de produtividade e meritocracia.

Também é interessante como a Ilha de Menos foge de um universo de conto de fadas e de uma seita/escola mágica. A edificação da Abadia Vermelha advém da força das mulheres que criaram um lugar no mundo em que as ambições de homens, insaciáveis por poder e prestígio, não são dominantes. E os inimigos não são inventados. Pelo contrário, são pais abusadores, mercenários que não querem o desenvolvimento da Ilha de Menos e homens que temem mulheres com conhecimento e habilidades. Para combater esses inimigos, irmãs e noviças extraem poder de forma harmônica e consciente dos recursos naturais e das sabedorias ancestrais.

E assim a Ilha de Menos se torna um lugar em que todas as mulheres gostariam de ir um dia. Um lugar onde pudessem desenvolver a coletividade e os cuidados umas com as outras sem sofrem as constantes irradiações e consequências do machismo.

Ao contrário de Naondel, que relata a história de surgimento da Abadia Vermelha, Maresi tende a ser uma leitura menos complexa em alguns momentos, mas nem por isso perde na formação de um imaginário transgressor e que nos estimula a pensar para fora de valores machistas e heteronormativos.

Ao ler Maresi, já adulta, fiquei imaginando o quanto essa história iria me impactar na infância, período em que pude pouco consumir histórias em que existissem protagonistas mulheres lutando por liberdade e pelo desenvolvimento de um mundo melhor. E, nesse mesmo sentido, Maresi afronta a lógica dominante de concorrência entre mulheres. A partir do exemplo de amizade entre as noviças Maresi, Jai e Heo, a obra apregoa sobre a necessidade de união entre as mulheres para enfrentarem situações de aprisionamento e isolamento.

Maresi é uma ode à amizade das mulheres e a uma liturgia feminina não essencialista, calcada em valores de solidariedade, diversidade e conhecimento.

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